Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Frágil embarcação é uma metáfora apropriada para designar a travessia do ser humano e da humanidade em seu conjunto, desde o nascimento até a morte. Do berço ao túmulo, em meio a tempestades e turbulências, vamos cruzando onda após onda, sem saber ao certo o que nos espera no porto. As estrelas podem nos guiar, quem sabe algum farol ajude a acertar o rumo do horizonte, mas na maioria das vezes é às cegas que prosseguimos na navegação. A fragilidade da embarcação se revela em diversos níveis e instâncias.
A Pessoa
Em termos pessoais, quando concentramos o olhar sobre o próprio coração nos deparamos com um feixe de medos e dúvidas, de perguntas sem resposta e enfermidades sem remédio, de incoerências e contradições, de ruídos e paixões desordenadas. É o terreno das “alegrias e esperanças, das angústias e tristezas”, lembra a abertura da Gaudium et Spes, já que estamos celebrando o Jubileu de Ouro do Concílio Ecumênico Vaticano II. Perturbações e sonhos se mesclam, lutas resultam em fracassos ou vitórias, que vão se alternando ao longo da estrada.
O espírito navega em águas turvas, onde se vê impulsionado por desejos inconfessados e inconfessáveis, quando não simplesmente ignorados e desconhecidos. “Faço o que não quero e deixo de fazer o que me propus”, reconhece o apóstolo Paulo, que convive, além do mais, com o “espinho na carne”. “Coração de gente é terra selvagem”, diz com razão o poeta Guimarães Rosa. Nesse nível, o ser humano não passa de um ponto de interrogação itinerante, numa busca sem fim pelo sentido profundo de sua existência. Um caniço agitado, batido por ventos contrários, embora seja sempre “um caniço que pensa” (Voltaire).
Conclui-se sem muito esforço que o indivíduo é, sim, uma frágil embarcação. Na sua trajetória existencial, mares bravios, ignotos “e nunca dantes navegados” (Camões) o inquietam, ameaçam e atemorizam. O mundo não deixa de ser um imenso oceano de ondas, perigos e fantasmas que, desde a mais longínqua antiguidade, mantém o ser humano numa atitude de vigilância e defesa. É aqui que se faz necessário descobrir o oceano infinito do amor de Deus.
Quando colocamos nosso pequeno barquinho nas águas se sua infinita misericórdia, os temores e tremores se convertem em coragem e confiança. Pode o Mestre estar dormindo, como o relato do Evangelho, mas está no barco e não o deixará afundar. Mais ainda, tem o poder de aplacar o furor da tempestade (Lc 8,22-25). Aliás, o sono tranquilo do Filho em meio ao mar agitado não será, para nós, o sinal mais forte de que a embarcação encontra-se segura nas mãos do Pai! Que podem as forças do mal diante do Criador? Como reza o salmista, “só em Deus a minha alma tem repouso, porque dele é que me vem a salvação; só ele é meu rochedo e salvação, a fortaleza onde encontro segurança” (Sl 61). Ou ainda: “O Senhor é minha luz e salvação, de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza de minha vida. Frente a quem tremerei?” (Sl 27). Edith Stein traduz semelhante entrega com uma simplicidade e transparência admiráveis: “sei que sou sustentada, e nisso tenho serenidade e segurança – não a segurança autoconsciente do homem que está no chão firme por força própria, mas a segurança doce e feliz de uma criança carregada por braços fortes – uma segurança que é, objetivamente falando, não menos racional. Ou seria ‘racional’ a criança viver permanentemente no temor de que sua mãe a possa deixar?” (Cfr. STEIN, Edith. Na força da cruz, coleção “clássicos da espiritualidade”, Ed. Cidade Nova, São Paulo, 2008).
A Família
Se deslocarmos o olhar da esfera pessoal para a esfera familiar, a tormenta em geral ganha uma magnitude mais perturbadora. Basta entrar no interior da casa de grande parte das famílias, ou de nosso próprio lar. Desemprego, doença, discórdia, gritos, violência – eis o oxigênio que se respira em não poucas delas. Nos dias de hoje, grande parte das famílias habitam não um lar, mas uma pensão. Cada um tem sua vida própria, aparecendo e desaparecendo para comer e dormir, numa prática individualista levado à potência extrema. Os apelos da mídia, especialmente de certos programas permissivos, ou de uma propaganda repetitiva e estridente, são furacões que rugem furiosamente em nossas portas e janelas. E nem adianta fechar portas e janelas!
Os apelos do marketing e da publicidade chegam pela TV, pelo computador, pelo celular e por toda essa parafernália da tecnologia de ponta. Nada contra as inovações tecnológicas. O mal é que os meios que foram inventados para aproximar as pessoas através da comunicação, acabam por separá-las. Multiplicam-se os laços virtuais e à distância em detrimento das relações primárias, familiares e de proximidade, cara a cara, olho no olho. Na concepção de Zygmunt Baumann, as relações sólidas, construídas lenta e laboriosamente, vão se derretendo. A “sociedade líquida”, com seus laços superficiais e descartáveis, toma o lugar dos contratos duradouros.
Isto para sequer falar das famílias devastadas pelo álcool, pelas drogas e por uma violência contínua. Aí as palavras se convertem em flechas que ferem e matam, enquanto o próprio silêncio não passa de um mutismo. Este é desértico, solitário, marcado pelo constrangimento, onde vigora a recusa da comunicação, ao passo que o verdadeiro silêncio é povoado, sereno e repousante. O mutismo é um monólogo que destila veneno e reprimida agressividade, cria abismos incomunicáveis; o silêncio, ao contrário, se reveste de profunda alegria, permitindo um diálogo mudo mas fértil e fecundo como a água da fonte.
Igual violência, que também destrói e desestrutura a convivência familiar, é o consumismo. Nunca houve tanto acesso aos utensílios de bem-estar e, ao mesmo tempo, nunca este foi tão raro. Pois as coisas do cotidiano, quando elevadas à condição de ídolos, murcham e matam o calor humano. De que adiantam dormitórios requintados de conforto, se lhes falta a intimidade do amor? De que servem salas ultramodernas e sofisticadas se nelas as visitas se sentem estranhas? De que adiantam cozinhas equipadas com o que há de mais avançado tecnologicamente, se o tempero do carinho não for a raiz e o fundamento da mesa, da partilha do pão e da vida? De que adiantam computadores, televisores e carros de última geração, se eles se interpõem entre os próprios familiares como objetos de adoração, descartando a possibilidade de uma convivência sadia e sólida?
Também no caso da família, a embarcação se revela muito frágil. Algumas à beira do abismo, ou, o que é pior, da indiferença. Nas águas turbulentas do mundo moderno e pós-moderno, a dupla de pilotos – pai e mãe – dificilmente logra manter firme o leme entre as mãos. Quantas casas navegam à deriva das ideias e ideologias mais obscuras e nocivas! Quantos desencontros dentro de um ambiente que deveria ser marcado pelo encontro! Novamente aqui, as ondas tempestuosas ameaçam mergulhar a casa no fundo do mar. A fragilidade do lar só encontrará verdadeira calmaria quando orientar seu barquinho para o lago cheio de luz e repousante do amor divino. Ali, no aconchego da fé e da esperança, a tormenta se relativiza e se reduz a proporções administráveis. Não, a tormenta não desaparecerá. A oração, a meditação e a contemplação não modificam nossos problemas pessoais ou familiares. Modificam, isso sim, nossa atitude diante deles. O medo e o desconforto são substituídos pela certeza de que Deus é o primeiro capitão do barco. O leme pode estar em nossas mãos, mas é Ele que ilumina e conduz pelo caminho da salvação.
A Sociedade
Mas as coisas se tornam bem mais complexas quando o mesmo olhar que percorreu o âmbito individual e familiar atinge a esfera da economia, da política, da cultura e da sociedade em seu conjunto. Neste nível, as ondas e as tormentas se tornam incomparavelmente mais ameaçadoras. Na voracidade com que a economia de mercado se globaliza e atinge todos os povos e nações, o próprio Planeta Terra se converte numa frágil embarcação. Catástrofes de ordem gigantesca, naturais e/ou provocadas pela ação do modelo político-econômico vigente, ameaçam submergi-lo no caos primitivo. O ser humano, particularmente a partir da revolução industrial, informática e tecnológica, desencadeou uma máquina de produzir/consumir que hoje espaça de todo controle. Países inteiros e pessoas são atropelados por uma vertiginosa avalanche de novidades, modismos e objetos. O globo terrestre não suporta semelhante ritmo de exploração de seus recursos naturais. Devastação, desertificação, poluição do ar e das águas, aquecimento global – são algumas das expressões que denotam a grande enfermidade que debilita o planeta. A vida em todas as suas formas – a biodiversidade – está em jogo. Cada espécie em extinção, fauna ou flora, diminui progressivamente a qualidade de vida sobre a face da terra.
Na esfera socioeconômica e político-cultural, as coisas não são diferentes. Os desequilíbrios e assimetrias entre regiões, países e grupos constituem um verdadeiro terremoto estrutural, seguido de um tsunami de ondas humanas que se deslocam em todas as direções. Ondas visíveis que, simultaneamente, escondem e revelam transformações obscuras nas correntes subterrâneas. Povos, línguas, bandeiras, moedas e costumes se misturam e se confundem por todos os lados. Os deslocamentos humanos de massa, em princípio, são oportunidades que se abrem a pessoas, famílias e grupos inteiros. Também podem engendrar novos valores, na medida em que entrelaçam expressões culturais e se enriquecem mutuamente. Muitos, no entanto, são marcados pela violência e pela fuga, gerando massas e massas de refugiados em permanente diáspora. Errantes que, ao mesmo tempo, figuram como termômetros das mudanças em curso e profetas de uma nova civilização: justa e fraterna, solidária e sustentável.
São variadas e de variada força as ondas que se batem contra a convivência pacífica da humanidade. Que o digam as tensões e conflitos, guerras frias ou quentes, genocídios, neocolonialismo, desigualdades sociais, holocaustos e violência de todo gênero. O resultado é o desenraizamento de muitas pessoas, famílias e povos, migrantes em itinerância, onde a fome e a sede, a dor e a solidão costumam ser as únicas companheiras. Quatro irmãs siamesas que não podem esperar e exigem uma ação imediata de governos, entidades, igrejas, organizações não governamentais, cientistas, movimentos sociais...
Nesta imensa e ao mesmo tempo frágil embarcação que é o Planeta Terra, vale retornar novamente à espiritualidade de Edith Stein. Mulher que soube unir o próprio sofrimento e morte no campo de concentração nazista Auschwistz à cruz de Cristo. Filósofa e mística, judia de nascimento e cristã por conversão, insistia que “a religião é raiz e fundamento de toda vida”. À pergunta de “como se pode começar a viver nas mãos do Senhor”, respondia com absoluta convicção: “Fica tranquilamente na igreja todo o tempo de que necessitas para encontrar serenidade e paz. Isso faz um bem enorme não somente a ti, mas também ao trabalho e a todas as pessoas com quem tens de lidar”. Com a alma serena apesar da consciência do que a esperava, concluía: “minha vida recomeça a cada manhã e termina a cada noite”.
Em tempos de gigantescas tempestades para o povo judeu, Edith Stein foi capaz de colocar sua frágil embarcação, como também a frágil embarcação de toda a vida humana, no infinito oceano de amor que é a misericórdia de Deus. Digamo-lo com suas próprias palavras, transformando-as no ponto final desta reflexão: “existe uma vocação ao sofrimento de Cristo e, por meio deste, uma vocação a colaborar com sua obra de redenção. Quando estamos unidos com o Senhor, somos membros do Corpo Místico de Cristo: Cristo continua vivendo em seus membros e continua sofrendo neles. Esse sofrimento, suportado em união com o Senhor, é o sofrimento Dele aplicado na grande obra redentora e que, nesta, se torna fecunda. Trata-se de um pensamento fundamental de toda a vida religiosa” (idem, ibidem).
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