Páginas

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Artigo: Em busca do profetismo perdido




Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS*

         Parafraseando a obra magistral do escritor francês Marcel Proust, a frase do título tenta entender porque se calaram a voz dos profetas. Refiro-me particularmente ao profetismo individual, que costuma ser mais imediato e mais ágil que o profetismo de instituição. Desde logo, ambos são legítimos e necessários, tendo cada um seu próprio lugar e sua relevância. Porém, enquanto a visão institucional deve seguir os passos lentos e pesados dos labirintos burocráticos, a profecia pessoal tende a ser mais livre e decida. E ainda, por estar próxima aos acontecimentos, no lugar e no momento certos, responde com maior imediatez e prontidão, Tomando as forças vivas e ativas da sociedade civil brasileira (e latino-americana), um confronto entre algumas décadas passadas e os dias de hoje revela um hiato visível a olho nu. Anos atrás, com efeito, clamores proféticos, nítidos e pessoais, com nome e rosto próprio, revestidos de um tempero inconfundível, erguiam-se do chão úmido de suor, lágrimas e sangue. A população pobre, explorada e excluída podia contar com seus portavozes, tanto no campo quanto na cidade. Não é que atualmente falte a denúncia pronta e corajosa, e até mesmo a perseguição e o martírio, mas ela parece ter perdido o tom, o vigor e o sabor, bem como sua força incisiva e seu poder de transformação. Além de despertar com relativo atraso, tornou-se apática e imprecisa, diluindo-se facilmente em meio a uma enorme e estridente profusão de vozes, luzes e sons dos meios de comunicação de massa.

Os ruídos e rumores da “sociedade do espetáculo” (Guy Debord), acrescidos pela ansiedade frente às novidades do mercado e do “império do efêmero” (Gilles Lipovtsky), na moda e na vida, deixam na penumbra todo e qualquer tipo de profetismo. Este, diante do fascínio dos holofotes, microfones e câmaras, apresenta-se sempre mais tímido, acanhado, como que fora de lugar, às vezes até meio evergonhado. Gestos, palavras, notas, documentos, entrevistas, discursos, ações e posturas – tanto pessoais quanto institucionais – tendem a passar despercebidos. Perderam o poder de sedução, a tal ponto que não raro o silêncio parece mais sábio, eloquente e eficaz.

Do ponto de vista da Igreja (ou das Igrejas), porém, isso se torna mais preocupante. Boa parte dos profetas de um tempo tendem a um movimento centrípeto de involução. Retornam ao templo, ao altar e à sacristia, como a um ninho acochegante e perdido, concentrando-se sobre um liturgismo anacrônico e um espiritualismo intimista e estéril. Pior ainda, não poucos retomam uma série de paramentos ricos, vistosos, coloridos, alguns bordados a ouro ou prata – mas esquecidos no fundo do baú histórico desde o Concílio Vaticano II. Com semelhante idumentária tradicional e tradicionalista, pavoneam-se como príncipes sem qualquer principado. 

Em muitos representantes do episcopado e do clero, a solenidade é levada a tal extremo de detalhes e exigências aparentes, que satura, banaliza e distorce o sentido profundo e verdadeiro do que poderia ser uma liturgia efetivamente solene e sublime. O tempero e a frequência extrapolam a justa medida! Além do mais, extasiam-se com a pompa, o luxo ostensivo e às vezes até mesmo com um triunfalismo medieval inadequado e de mau gosto. Mais grave ainda quando essa atitude contamina os próprios leigos e leigas. A pretexto dos ministérios não ordenados (válidos e importantes em si mesmos), também eles costumam pavonear-se com uma série de adereços vistosos e custosos, acabando por banalizar ou clericalizar o próprio papel do laicato ad intra e ad extra. 

Vi e ouvi alguns que, após um pretenso curso de liturgia (ou de liturgismo?), dominam tudo sobre os “paninhos do altar” e outros objetos sagrados (nome, cor, função, modo de usar), mas nada sabem ou nada procuram saber sobre o que ocorre do lado de fora das portas do templo. Cegos, mudos e surdos à condição de vida daqueles que habitam os porões das grandes metrópoles, as periferias das zonas urbanas ou os grotões longínquos do sertão e da floresta. Tão indiferentes a tudo isso como o são muitas vezes seus sacerdotes ou pastores, e como o foram, nos tempos de Jeus, os escribas, fariseus e saduceus.

Eis o problema mais sério: na boa e sadia tentativa de redescobrir a fonte viva e cristalina da mensagem do Evangelho, corre-se o risco perverso e nocivo de parar na Idade Média, onde as águas são bem mais turvas e agitadas. Nos tempos medievais, como sabemos, Igreja e Estado, altar e trono, missionário e soldado, cruz e espada – andavam de mãos dadas na tarefa de levar a “civilização e o cristianismo os povos bábaros”. Não foram poucos os danos causados por essa aliança espúria, nem os cádaveres deixados pelos campos ensaguentados das conquistas. Basta ter presente os episódios das Cruzadas, da Inquisição ou do “descobrimento” de novas terras. Neste ultimo caso, milhões de indígenas e afro-brasileiros (ou afro-americanos) foram compulsoriamente batizados e logo impiedosamente dizimados. 

O desafio que se coloca, neste caso, é o de ir até o fundo nessa redescoberta das fontes evangélicas e do Jesus histórico. Em lugar de deter-se nos tempos obscuros e triunfalistas da era medieval, torna-se necessário  recuar no tempo até as primeiras comunidades cristãs e, mais ainda, até o Ministério Público do profeta itinerante de Nazaré. Recuar para beber a àgua mais límpida e transparente que borbulha na fonte, nutrir-se e fortalecer-se de sua riqueza, para depois abrir novas veredas no terreno árido e pedregoso do contexto atual. Não se trata, evidentemente, de voltar ao passado, numa espécie de saudosismo doentio  com relação ao poder que a Igreja detinha diante dos reis, príncipes e servos da gleba. Trata-se, antes, de retomar o ímpeto profético das origens com vistas a renovar para os tempos que correm a própria veemência do profetismo real e concreto, alargando assim, simultaneamente, os horizontes da Palavra libertadora e os rumos da históri  a a ser construida e/ou corrigida. 

Nessa perspectiva, convém ter em conta o poder simbólico da Igreja (e dos representantes do sagrado) diante da população, particularmente de seus extratos mais empobrecidos. Poder simbólico que, como qualquer tipo de poder, não deixa de comportar forte ambiguidade. De fato, ele pode ser utilizado tanto para ajudar a conscientizar, organizar e mobilizar os oprimidos em busca de melhores condições de vida, quanto para anestesiar e alienar o povo, anunlando neste uma participação rica e real de crítica construtiva. Talvez esteja aí o dilema entre comunidades eclesiais de base e pastorais sociais, de um lado, e movimentos religiosos, de outro. Todos podem conviver lado a lado e têm uma contribuição dentro e fora da Igreja, mas é necessário evitar os conflitos frontais e os extremos que em geral os desautoriza uns diante dos outros e juntos diante de toda a assembleia dos fiéis.

Não é o caso de afirmar que a indiferença e apatia atual tenham uma intenção consciente e deliberada de eliminar o profetismo (salvo algumas exceções, é claro!). Vale insistir, tudo é feito em nome do retorno às fontes dos relatos evangélicos e à figura humano-divina de Jesus, ou  em nome de uma retomada da missão espiritual da Igreja. E aqui uma pergunta se levanta com extrema preocupação: como voltar a Jesus e à centralidade de sua mensagem dando as costas aos pobres, oprimidos, marginalizados, indefesos, aos que penam, choram e sofrem? Aparece então, em toda a sua nudez, a flagrante dicotomia entre o discurso sobre o Reino de Deus e a falta de compromisso sociopastoral e político com a população de baixa renda. De fato, como é possível olhar para Jesus e, ao mesmo tempo, esquecer aqueles que foram os prediletos de seu amor e de sua misericódia – os protagonistas preferenciais de sua Boa Nova. Deixo a pergunta a quem, em meio às ondas da  tempestad  e, procura orientar sua frágil embarcação!

Para concluir, podemos voltar à paráfrase do título em forma de interrogação: como buscar o profetismo perdido? O profeta é aquele que desenvolve tal sintonia com pobres e excluídos, e experimenta de tal forma as contradições do contexto histórico em que estes vivem e se movem, a ponto de formar com eles um só organismo dinâmico, vital e compacto. Por isso suas “entranhas estremecem” diante de qualquer dor ou êxtase desse corpo vivo e único. E aí entra a outra face da moeda: a fé ou sintonia com o Deus e Senhor da história. Com essa fé, o profeta se compadece de forma ainda mais profunda com todos os filhos e filhas do mesmo Pai que tenham a vida ou a dignidade ameaçadas. Mais do que irmão de sangue, as duas dimensões combinadas o tornam irmão no espírito. Para ser profeta, portanto, impõe-se a difícil tarefa de descer aos infernos do sofrimento humano e subir aos céus do amor e misericórdia de Deus, de forma permanente e indissociável, simult    nea e dialética !
*Provincial dos Carlistas

Nenhum comentário:

Boas vindas!

Você é o visitante!