Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS*
Parafraseando a obra magistral do escritor francês Marcel Proust, a
frase do título tenta entender porque se calaram a voz dos profetas. Refiro-me
particularmente ao profetismo individual, que costuma ser mais imediato e mais
ágil que o profetismo de instituição. Desde logo, ambos são legítimos e
necessários, tendo cada um seu próprio lugar e sua relevância. Porém, enquanto
a visão institucional deve seguir os passos lentos e pesados dos labirintos
burocráticos, a profecia pessoal tende a ser mais livre e decida. E ainda, por
estar próxima aos acontecimentos, no lugar e no momento certos, responde com
maior imediatez e prontidão, Tomando as forças vivas e ativas da sociedade
civil brasileira (e latino-americana), um confronto entre algumas décadas
passadas e os dias de hoje revela um hiato visível a olho nu. Anos atrás, com
efeito, clamores proféticos, nítidos e pessoais, com nome e rosto próprio,
revestidos de um tempero inconfundível, erguiam-se do chão úmido de suor,
lágrimas e sangue. A população pobre, explorada e excluída podia contar com
seus portavozes, tanto no campo quanto na cidade. Não é que atualmente falte a
denúncia pronta e corajosa, e até mesmo a perseguição e o martírio, mas ela
parece ter perdido o tom, o vigor e o sabor, bem como sua força incisiva e seu
poder de transformação. Além de despertar com relativo atraso, tornou-se
apática e imprecisa, diluindo-se facilmente em meio a uma enorme e estridente
profusão de vozes, luzes e sons dos meios de comunicação de massa.
Os ruídos e rumores da “sociedade do espetáculo” (Guy
Debord), acrescidos pela ansiedade frente às novidades do mercado e do “império
do efêmero” (Gilles Lipovtsky), na moda e na vida, deixam na penumbra todo e
qualquer tipo de profetismo. Este, diante do fascínio dos holofotes, microfones
e câmaras, apresenta-se sempre mais tímido, acanhado, como que fora de lugar,
às vezes até meio evergonhado. Gestos, palavras, notas, documentos,
entrevistas, discursos, ações e posturas – tanto pessoais quanto institucionais
– tendem a passar despercebidos. Perderam o poder de sedução, a tal ponto que
não raro o silêncio parece mais sábio, eloquente e eficaz.
Do ponto de vista da Igreja (ou das Igrejas), porém, isso
se torna mais preocupante. Boa parte dos profetas de um tempo tendem a um
movimento centrípeto de involução. Retornam ao templo, ao altar e à sacristia,
como a um ninho acochegante e perdido, concentrando-se sobre um liturgismo
anacrônico e um espiritualismo intimista e estéril. Pior ainda, não poucos
retomam uma série de paramentos ricos, vistosos, coloridos, alguns bordados a
ouro ou prata – mas esquecidos no fundo do baú histórico desde o Concílio
Vaticano II. Com semelhante idumentária tradicional e tradicionalista,
pavoneam-se como príncipes sem qualquer principado.
Em muitos representantes do episcopado e do clero, a
solenidade é levada a tal extremo de detalhes e exigências aparentes, que
satura, banaliza e distorce o sentido profundo e verdadeiro do que poderia ser
uma liturgia efetivamente solene e sublime. O tempero e a frequência extrapolam
a justa medida! Além do mais, extasiam-se com a pompa, o luxo ostensivo e às
vezes até mesmo com um triunfalismo medieval inadequado e de mau gosto. Mais
grave ainda quando essa atitude contamina os próprios leigos e leigas. A
pretexto dos ministérios não ordenados (válidos e importantes em si mesmos),
também eles costumam pavonear-se com uma série de adereços vistosos e custosos,
acabando por banalizar ou clericalizar o próprio papel do laicato ad intra e ad
extra.
Vi e ouvi alguns que, após um pretenso curso de liturgia
(ou de liturgismo?), dominam tudo sobre os “paninhos do altar” e outros objetos
sagrados (nome, cor, função, modo de usar), mas nada sabem ou nada procuram
saber sobre o que ocorre do lado de fora das portas do templo. Cegos, mudos e
surdos à condição de vida daqueles que habitam os porões das grandes
metrópoles, as periferias das zonas urbanas ou os grotões longínquos do sertão
e da floresta. Tão indiferentes a tudo isso como o são muitas vezes seus
sacerdotes ou pastores, e como o foram, nos tempos de Jeus, os escribas,
fariseus e saduceus.
Eis o problema mais sério: na boa e sadia tentativa de
redescobrir a fonte viva e cristalina da mensagem do Evangelho, corre-se o
risco perverso e nocivo de parar na Idade Média, onde as águas são bem mais
turvas e agitadas. Nos tempos medievais, como sabemos, Igreja e Estado, altar e
trono, missionário e soldado, cruz e espada – andavam de mãos dadas na tarefa
de levar a “civilização e o cristianismo os povos bábaros”. Não foram poucos os
danos causados por essa aliança espúria, nem os cádaveres deixados pelos campos
ensaguentados das conquistas. Basta ter presente os episódios das Cruzadas, da
Inquisição ou do “descobrimento” de novas terras. Neste ultimo caso, milhões de
indígenas e afro-brasileiros (ou afro-americanos) foram compulsoriamente
batizados e logo impiedosamente dizimados.
O desafio que se coloca, neste caso, é o de ir até o
fundo nessa redescoberta das fontes evangélicas e do Jesus histórico. Em lugar
de deter-se nos tempos obscuros e triunfalistas da era medieval, torna-se
necessário recuar no tempo até as
primeiras comunidades cristãs e, mais ainda, até o Ministério Público do
profeta itinerante de Nazaré. Recuar para beber a àgua mais límpida e
transparente que borbulha na fonte, nutrir-se e fortalecer-se de sua riqueza,
para depois abrir novas veredas no terreno árido e pedregoso do contexto atual.
Não se trata, evidentemente, de voltar ao passado, numa espécie de saudosismo
doentio com relação ao poder que a
Igreja detinha diante dos reis, príncipes e servos da gleba. Trata-se, antes,
de retomar o ímpeto profético das origens com vistas a renovar para os tempos
que correm a própria veemência do profetismo real e concreto, alargando assim,
simultaneamente, os horizontes da Palavra libertadora e os rumos da
históri a a ser construida e/ou
corrigida.
Nessa perspectiva, convém ter em conta o poder simbólico
da Igreja (e dos representantes do sagrado) diante da população,
particularmente de seus extratos mais empobrecidos. Poder simbólico que, como
qualquer tipo de poder, não deixa de comportar forte ambiguidade. De fato, ele
pode ser utilizado tanto para ajudar a conscientizar, organizar e mobilizar os
oprimidos em busca de melhores condições de vida, quanto para anestesiar e alienar
o povo, anunlando neste uma participação rica e real de crítica construtiva.
Talvez esteja aí o dilema entre comunidades eclesiais de base e pastorais
sociais, de um lado, e movimentos religiosos, de outro. Todos podem conviver
lado a lado e têm uma contribuição dentro e fora da Igreja, mas é necessário
evitar os conflitos frontais e os extremos que em geral os desautoriza uns
diante dos outros e juntos diante de toda a assembleia dos fiéis.
Não é o caso de afirmar que a indiferença e apatia atual
tenham uma intenção consciente e deliberada de eliminar o profetismo (salvo
algumas exceções, é claro!). Vale insistir, tudo é feito em nome do retorno às
fontes dos relatos evangélicos e à figura humano-divina de Jesus, ou em nome de uma retomada da missão espiritual
da Igreja. E aqui uma pergunta se levanta com extrema preocupação: como voltar
a Jesus e à centralidade de sua mensagem dando as costas aos pobres, oprimidos,
marginalizados, indefesos, aos que penam, choram e sofrem? Aparece então, em
toda a sua nudez, a flagrante dicotomia entre o discurso sobre o Reino de Deus
e a falta de compromisso sociopastoral e político com a população de baixa
renda. De fato, como é possível olhar para Jesus e, ao mesmo tempo, esquecer
aqueles que foram os prediletos de seu amor e de sua misericódia – os
protagonistas preferenciais de sua Boa Nova. Deixo a pergunta a quem, em meio
às ondas da tempestad e, procura orientar sua frágil embarcação!
Para concluir, podemos voltar à paráfrase do título em
forma de interrogação: como buscar o profetismo perdido? O profeta é aquele que
desenvolve tal sintonia com pobres e excluídos, e experimenta de tal forma as
contradições do contexto histórico em que estes vivem e se movem, a ponto de
formar com eles um só organismo dinâmico, vital e compacto. Por isso suas
“entranhas estremecem” diante de qualquer dor ou êxtase desse corpo vivo e
único. E aí entra a outra face da moeda: a fé ou sintonia com o Deus e Senhor
da história. Com essa fé, o profeta se compadece de forma ainda mais profunda
com todos os filhos e filhas do mesmo Pai que tenham a vida ou a dignidade
ameaçadas. Mais do que irmão de sangue, as duas dimensões combinadas o tornam
irmão no espírito. Para ser profeta, portanto, impõe-se a difícil tarefa de
descer aos infernos do sofrimento humano e subir aos céus do amor e
misericórdia de Deus, de forma permanente e indissociável, simult nea e dialética !
*Provincial dos
Carlistas
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