Entrevista com o padre José Oscar Beozzo
João Batista Libânio é o mais fecundo autor teológico brasileiro na produção de tratados que pudessem ajudar os estudantes a aprofundar os temas teológicos abordados em sala de aula, testemunha o teólogo e historiador da Igreja brasileira.
Ao refletir sobre o legado e pensamento de João Batista Libânio, teólogo, jesuíta, autor de uma vasta obra teológica, que celebra, neste ano, 80 anos de vida, José Oscar Beozzo, especialista em história da Igreja, oferece, nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, um panorama da história da Igreja nos últimos 50 anos.
Para ele, a experiência do Concílio Vaticano II, seu debate teológico e eclesial, sua postura de diálogo e atenção ao mundo contemporâneo, sua opção ecumênica, permeiam toda a teologia de Libânio. E Beozzo diz mais: “o Vaticano II é elemento estruturante de sua teologia. Esta se enriqueceu depois com toda a perspectiva latino-americana que brotou da experiência das Igrejas no continente, de sua vida religiosa inserida e das grandes Conferências Gerais do episcopado latino-americano de Medellín a Aparecida”. Segundo Beozzo, graças ao seu “incansável e disciplinado acompanhamento crítico da produção teológica brasileira, latino-americana e internacional, Libânio tornou-se mestre em preparar balanços abrangentes e penetrantes dos rumos da teologia contemporânea”.
José Oscar Beozzo é padre, teólogo e coordenador geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – Cesep. Tem mestrado em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo – USP. Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina – CEHILA/Brasil, filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe – CEHILA. Também é sócio-fundador da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital. É autor de inúmeros livros, entre os quais A Igreja do Brasil (Petrópolis: Vozes, 1993) e A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965 (São Paulo: Paulinas, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Seu primeiro encontro com Libânio foi em Roma, nos anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), quando ele era diretor de estudos do Pontifício Colégio Pio Brasileiro. O que marcou esse período, destacando a importância de Libânio como orientador dos estudantes brasileiros? Como o processo conciliar repercutia entre vocês?
José Oscar Beozzo – O Colégio Pio Brasileiro teve o privilégio de se tornar a residência do Cardeal Agostinho Bea, responsável pelo recém-criado Secretariado para a União dos Cristãos, o mais significativo organismo conciliar da fase preparatória do Concílio. O Secretariado representou a grande novidade para estabelecer o diálogo com as outras Igrejas cristãs e implementar o propósito ecumênico de João XXIII para o Concílio. Poucas semanas depois de criado João XXIII pediu ao cardeal Bea que se ocupasse também do diálogo com o mundo judaico. O Cardeal reunia regularmente a direção e os estudantes do Pio Brasileiro para colocar-nos a par da preparação do Concílio e para informar as iniciativas e os passos concretos do Secretariado. Por vezes, convocava-nos para dar as boas-vindas a visitas ilustres, como o primaz da Igreja Anglicana, o arcebispo de Canterbury, o Dr. Fisher, que foi recebido por João XXIII e logo depois veio ao Pio Brasileiro para encontrar-se com o Cardeal Bea. Nós o acolhemos festivamente na entrada do Colégio contrastando com a recepção fria e quase anônima que lhe fora dispensada pela Cúria Romana. Padre Libânio chegou ao Pio Brasileiro, como jovem padre. Terminara sua teologia em Frankfurt na Alemanha e vinha substituir o Pe. Marcelo Azevedo, como repetidor dos estudantes de teologia. Para os estudantes de filosofia, o repetidor na época era o Pe. Luciano Mendes de Almeida, depois bispo auxiliar de São Paulo, por duas vezes secretário-geral da CNBB e, finalmente, seu presidente por outras duas vezes, já como arcebispo de Mariana-MG.
Libânio no papel de repetidor
A função do repetidor era de orientar pessoalmente cada estudante nos seus estudos. Ajudavam-nos e muito ao darem um panorama geral de cada disciplina que iríamos estudar no semestre seguinte. Apontavam as principais questões envolvidas, o debate existente e a posição das diferentes escolas de teologia. Dentro da vasta bibliografia de cada professor, indicavam os livros e artigos mais relevantes. Poupavam-nos, assim, perda de tempo e leituras que pouco acrescentavam.
Tarefa difícil para Libânio foi substituir naquela função o Pe. Marcelo Azevedo, por conta de sua competência e o brilho. Libânio desempenhou muito bem e com igual brilhantismo o papel de repetidor. Sob certo ponto de vista, foi até melhor repetidor, pois não despertava aquele respeito reverencial que nos mantinha um pouco distantes do Pe. Marcelo.
Aberto o Concílio a 11 de outubro de 1962, o Pio Brasileiro envolveu-se intensamente no seu desenrolar, não apenas pela presença do Cardeal Bea na casa, pelo contato com muitos de nossos professores da Gregoriana que eram peritos conciliares e consultores das comissões, mas por três outras felizes circunstâncias.
Bem depressa, estabeleceu-se um intercâmbio diuturno entre os bispos brasileiros hospedados na casa da Ação Católica Feminina italiana, a Domus Mariae, situada no número 481 da Via Aurelia e os alunos do Pio Brasileiro, moradores da mesma rua, um pouco mais adiante no número 527, que ficava na mesma calçada.
O desenrolar do Concílio
Os contatos informais dos bispos com seus seminaristas foram logo enriquecidos por duas outras iniciativas: aos domingos os bispos de um determinado regional da CNBB vinham de manhã falar aos estudantes sobre a Igreja do Brasil, cobrindo assim realidades tão diferentes como a dos pampas gaúchos, a da floresta amazônica ou dos sertões nordestinos. Tivemos assim a ocasião de conhecer não apenas quase todos os bispos, mas a situação específica da Igreja em cada região do país. Uma segunda iniciativa que se consolidou foi a da vinda de um bispo para almoçar conosco a cada dia e partilhar, logo depois, no horário de recreio, o que havia acontecido pela manhã na aula conciliar: os temas discutidos, as intervenções mais importantes, sua impressão pessoal. Além dos boletins de imprensa diários em língua italiana e portuguesa, lidos no refeitório, podíamos conferir, assim, com participantes e testemunhas oculares suas impressões, comentários, aclarações acerca do desenrolar do Concílio.
As conferências da Domus Mariae
Mais instrutivas ainda do ponto de vista teológico, eram as conferências da Domus Mariae que os teólogos mais em vista do Concílio vinham proferir de noite para os bispos brasileiros e que, nós, estudantes, íamos furtivamente assistir dos balcões do segundo andar do grande salão de eventos da casa. Ali, pudemos ouvir todos os grandes teólogos do concílio, de Karl Rahner SJ a Henri de Lubac SJ, de Yves Congar OP a Hans Küng, de Edward Schillebeeckx OP, a Bernard Haring CSSR, Joseph Ratzinger, Lebret, OP; bispos como Sergio Mendes Arceo, de Cuernava no México, Alfred Ancel, de Lyon na França, Mons. Bogarín, do Paraguai, ou os Cardeais Leo Suenens, Agostinho Bea, Giacomo Lercaro, Joseph Cardijn ou ainda teólogos protestantes como o professor Oscar Cullman e os monges de Taizé, Max Thurian e Roger Schutz ou ainda membros ou especialistas das Igrejas Orientais: Andrej Scrima, teólogo do Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Athenagoras, Mons. Neophytos Edelby da Igreja Melquita e Frei Christophe René Dumont OP do Centro Istina de Paris. Não faltaram leigos e leigas, auditores do Concílio, entre os quais, Vitorino Veronezzi, o casal mexicano do Movimento Familiar Cristão, José e Luz Alvarez Icaza, o escritor, membro da Academia Francesa de Letras, Jean Guitton e a presidente do Movimento Feminino Internacional dos Meios Independentes, Marie Louise Monnet.
IHU On-Line – O que significou o Concílio Vaticano II na trajetória do pensamento e da teologia de Libânio?
José Oscar Beozzo – A experiência do Vaticano II, seu debate teológico e eclesial, sua postura de diálogo e atenção ao mundo contemporâneo, sua opção ecumênica, permeiam toda a teologia do Libânio. Diria mais, o Vaticano II é elemento estruturante de sua teologia. Esta se enriqueceu depois com toda a perspectiva latino-americana que brotou da experiência das Igrejas no continente, de sua vida religiosa inserida e das grandes Conferências Gerais do Episcopado latino-americano de Medellín a Aparecida.
IHU On-Line – Depois de um período na Europa, Libânio retornou ao Brasil em 1969. Como a realidade brasileira e latino-americana impactou na construção do pensamento de Libânio?
José Oscar Beozzo – Retornando ao Brasil, Libânio (foto) mergulhou na realidade brasileira e também latino-americana. Do ponto de vista pastoral, continua marcante sua inserção numa comunidade de periferia de Belo Horizonte e sua parceria com o falecido Pe. Alberto Antoniazzi na assessoria teológica e pastoral do projeto “Construir a Esperança” que alicerçou o empenho missionário evangelizador para a realidade urbana da região metropolitana Belo Horizonte.
Sua participação na equipe de reflexão teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil - CRB tornou-o parceiro na busca do necessário suporte teológico para as opções pastorais e os desafios da vida religiosa no pós-Vaticano II e na trilha das opções de Medellín e Puebla. Graças ao seu incansável e disciplinado acompanhamento crítico da produção teológica brasileira, latino-americana e internacional, Libânio tornou-se mestre em preparar balanços abrangentes e penetrantes dos rumos da teologia contemporânea. Sobre a CRB deixou-nos um longo estudo, A reflexão teológica sobre a Vida Consagrada – Período de 1980-2000, publicado por Edênio Valle no Memória Histórica. As lições de uma caminhada de 50 anos: CRB – 1954 a 2004 (Rio de Janeiro: CRB, 2004).
Libânio fez parte da equipe de reflexão teológica da Conferência Latino-Americana dos Religiosos - CLAR envolvendo-se em todos os grandes debates pastorais e teológicos da Igreja na América Latina e no Caribe. Quando do Congresso da CLAR, em 2009, foi dado por Libânio um balanço da contribuição teológica da vida religiosa no continente: Vida Consagrada e teologia latino-americana. Saiu publicado no livro de memórias do encontro: Aportes de la Vida Religiosa a la Teología Latinoamericana y del Caribe. Hacia el futuro.
Libânio participou ativamente da grande empreitada de se repensar aqui na América Latina, toda a teologia à luz da libertação e escreveu em parceria com Maria Clara Bingemer, uma de suas discípulas diletas, um dos livros da Coleção Teologia e Libertação, sobre o tema da escatologia cristã.
IHU On-Line – De modo geral, qual a contribuição de Libânio para a caminhada das Comunidades Eclesiais de Base?
José Oscar Beozzo – Junto com um grupo de teólogos, teólogas, biblistas, Libânio acompanhou desde o início (1975) os Encontros Intereclesiais das CEBs. Bem depressa assumiu a tarefa de coordenar a contribuição dos teólogos/as antes, durante e depois dos intereclesiais. Cumpria a tarefa com maestria, distribuindo-os pelos diferentes grupos e plenários para prestarem assessoria caso fossem solicitados, mas também para acompanhar como cronistas cada aspecto do encontro. Incumbia-se ainda da tarefa de provocar a cada um, cada uma, para que, terminado o encontro e dentro de prazos curtos, escrevesse um artigo mais pensado sobre determinados aspectos do intereclesial: suas celebrações, suas reflexões temáticas, seus conflitos, a prática pastoral e a reflexão teológica que emergiam dos relatos. Isso permitiu que de cada intereclesial, as CEBs e a Igreja do Brasil pudessem contar com um volume temático da REB ou da Vida Pastoral ou mesmo de livros que recolheram essas contribuições. Inestimável essa contribuição para que não se perdesse nem a riqueza humana e eclesial destes eventos, mas que seguissem ajudando a iluminar e alimentar a caminhada das CEBs.
IHU On-Line – A partir do pensamento e da prática de Libânio, o que deve continuar repercutindo na caminhada da Igreja?
José Oscar Beozzo – Em tempos de crise no campo da formação em geral, Libânio é um marco referencial pelo menos sob três aspectos:
— O cuidado e atenção que sempre dedicou ao processo de formação de leigos e leigos na Pastoral da Juventude e Universitária, nas pastorais e nas CEBs.
— Seu empenho de toda uma vida na preparação teológica dos estudantes da Companhia de Jesus e de quantos buscavam uma educação teológica séria e aberta, leigos, leigas, ou candidatos à vida presbiteral e religiosa. Esse tirocínio iniciou-se no Pio Brasileiro e prosseguiu nos longos anos de docência no ISI (Instituto Santo Inácio, hoje Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus). A docência como vocação levou Libânio a ser o mais fecundo autor teológico brasileiro na produção de tratados que pudessem ajudar os estudantes a aprofundar os temas teológicos abordados em sala de aula.
— A preocupação de que a teologia não fosse um exercício abstrato, distante da realidade ou simplesmente acadêmico, voltado para o diálogo com os seus pares, mas que seu diálogo fosse com a vida das pessoas e a pastoral da Igreja.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto que não foi perguntado?
José Oscar Beozzo – Gostaria de enfatizar o legado de Libânio como educador, na linha da maiêutica socrática, introduzindo as pessoas na arte da reflexão e do pensamento regrado, fundamentado e finalmente prático. Destaco duas de suas publicações nessa linha. No A arte de formar-se, Libânio deixa-se guiar pela pergunta: “qual é a arte de formar-se uma inteligência crítica, bem estruturada, em vez de um armazém entulhado de conhecimentos? Como aprender a pensar e a conhecer?”. Libânio aponta o que chama de os cinco pilares da formação: “aprender a conhecer e a pensar, aprender a fazer, aprender a conviver com os outros, aprender a ser e aprender a discernir a vontade de Deus” .
Nesse opúsculo, Libânio já anuncia uma obra mais alentada, na mesma direção, que saiu anos depois pela Loyola: Introdução à vida intelectual. Retoma de certo modo o ambicioso projeto do tomista Sertillanges, com o seu clássico A vida intelectual: espírito, condições, métodos . Acrescenta, entretanto, ao saber teórico do mestre dominicano, sugestões bem práticas, indicando “o caminho das pedras”, para o iniciante nesta difícil e fascinante aventura do conhecimento. Parte da intuição de fundo que não se estuda só com a inteligência: “É todo o ser humano que se compromete com as lides intelectuais” . Divide seu trabalho em duas partes, dedicando a primeira às atitudes fundamentais da vocação intelectual e a segunda a diversos aspectos da vida de estudo: da reunião de grupo, ao estudo de um tema; da produção de uma monografia aos muitos tipos de leitura e ao ensino acadêmico. Para cada um desses pontos, abundam as sugestões práticas de quem já passou por longo tirocínio e aprendizado, acumulando experiência e sabedoria que são partilhadas generosamente.
Fonte: A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, J. B. Libânio. A trajetória de um teólogo brasileiro. Testemunhos, no. 394.
Ao refletir sobre o legado e pensamento de João Batista Libânio, teólogo, jesuíta, autor de uma vasta obra teológica, que celebra, neste ano, 80 anos de vida, José Oscar Beozzo, especialista em história da Igreja, oferece, nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, um panorama da história da Igreja nos últimos 50 anos.
Para ele, a experiência do Concílio Vaticano II, seu debate teológico e eclesial, sua postura de diálogo e atenção ao mundo contemporâneo, sua opção ecumênica, permeiam toda a teologia de Libânio. E Beozzo diz mais: “o Vaticano II é elemento estruturante de sua teologia. Esta se enriqueceu depois com toda a perspectiva latino-americana que brotou da experiência das Igrejas no continente, de sua vida religiosa inserida e das grandes Conferências Gerais do episcopado latino-americano de Medellín a Aparecida”. Segundo Beozzo, graças ao seu “incansável e disciplinado acompanhamento crítico da produção teológica brasileira, latino-americana e internacional, Libânio tornou-se mestre em preparar balanços abrangentes e penetrantes dos rumos da teologia contemporânea”.
José Oscar Beozzo é padre, teólogo e coordenador geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – Cesep. Tem mestrado em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo – USP. Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina – CEHILA/Brasil, filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe – CEHILA. Também é sócio-fundador da Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital. É autor de inúmeros livros, entre os quais A Igreja do Brasil (Petrópolis: Vozes, 1993) e A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965 (São Paulo: Paulinas, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Seu primeiro encontro com Libânio foi em Roma, nos anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), quando ele era diretor de estudos do Pontifício Colégio Pio Brasileiro. O que marcou esse período, destacando a importância de Libânio como orientador dos estudantes brasileiros? Como o processo conciliar repercutia entre vocês?
José Oscar Beozzo – O Colégio Pio Brasileiro teve o privilégio de se tornar a residência do Cardeal Agostinho Bea, responsável pelo recém-criado Secretariado para a União dos Cristãos, o mais significativo organismo conciliar da fase preparatória do Concílio. O Secretariado representou a grande novidade para estabelecer o diálogo com as outras Igrejas cristãs e implementar o propósito ecumênico de João XXIII para o Concílio. Poucas semanas depois de criado João XXIII pediu ao cardeal Bea que se ocupasse também do diálogo com o mundo judaico. O Cardeal reunia regularmente a direção e os estudantes do Pio Brasileiro para colocar-nos a par da preparação do Concílio e para informar as iniciativas e os passos concretos do Secretariado. Por vezes, convocava-nos para dar as boas-vindas a visitas ilustres, como o primaz da Igreja Anglicana, o arcebispo de Canterbury, o Dr. Fisher, que foi recebido por João XXIII e logo depois veio ao Pio Brasileiro para encontrar-se com o Cardeal Bea. Nós o acolhemos festivamente na entrada do Colégio contrastando com a recepção fria e quase anônima que lhe fora dispensada pela Cúria Romana. Padre Libânio chegou ao Pio Brasileiro, como jovem padre. Terminara sua teologia em Frankfurt na Alemanha e vinha substituir o Pe. Marcelo Azevedo, como repetidor dos estudantes de teologia. Para os estudantes de filosofia, o repetidor na época era o Pe. Luciano Mendes de Almeida, depois bispo auxiliar de São Paulo, por duas vezes secretário-geral da CNBB e, finalmente, seu presidente por outras duas vezes, já como arcebispo de Mariana-MG.
Libânio no papel de repetidor
A função do repetidor era de orientar pessoalmente cada estudante nos seus estudos. Ajudavam-nos e muito ao darem um panorama geral de cada disciplina que iríamos estudar no semestre seguinte. Apontavam as principais questões envolvidas, o debate existente e a posição das diferentes escolas de teologia. Dentro da vasta bibliografia de cada professor, indicavam os livros e artigos mais relevantes. Poupavam-nos, assim, perda de tempo e leituras que pouco acrescentavam.
Tarefa difícil para Libânio foi substituir naquela função o Pe. Marcelo Azevedo, por conta de sua competência e o brilho. Libânio desempenhou muito bem e com igual brilhantismo o papel de repetidor. Sob certo ponto de vista, foi até melhor repetidor, pois não despertava aquele respeito reverencial que nos mantinha um pouco distantes do Pe. Marcelo.
Aberto o Concílio a 11 de outubro de 1962, o Pio Brasileiro envolveu-se intensamente no seu desenrolar, não apenas pela presença do Cardeal Bea na casa, pelo contato com muitos de nossos professores da Gregoriana que eram peritos conciliares e consultores das comissões, mas por três outras felizes circunstâncias.
Bem depressa, estabeleceu-se um intercâmbio diuturno entre os bispos brasileiros hospedados na casa da Ação Católica Feminina italiana, a Domus Mariae, situada no número 481 da Via Aurelia e os alunos do Pio Brasileiro, moradores da mesma rua, um pouco mais adiante no número 527, que ficava na mesma calçada.
O desenrolar do Concílio
Os contatos informais dos bispos com seus seminaristas foram logo enriquecidos por duas outras iniciativas: aos domingos os bispos de um determinado regional da CNBB vinham de manhã falar aos estudantes sobre a Igreja do Brasil, cobrindo assim realidades tão diferentes como a dos pampas gaúchos, a da floresta amazônica ou dos sertões nordestinos. Tivemos assim a ocasião de conhecer não apenas quase todos os bispos, mas a situação específica da Igreja em cada região do país. Uma segunda iniciativa que se consolidou foi a da vinda de um bispo para almoçar conosco a cada dia e partilhar, logo depois, no horário de recreio, o que havia acontecido pela manhã na aula conciliar: os temas discutidos, as intervenções mais importantes, sua impressão pessoal. Além dos boletins de imprensa diários em língua italiana e portuguesa, lidos no refeitório, podíamos conferir, assim, com participantes e testemunhas oculares suas impressões, comentários, aclarações acerca do desenrolar do Concílio.
As conferências da Domus Mariae
Mais instrutivas ainda do ponto de vista teológico, eram as conferências da Domus Mariae que os teólogos mais em vista do Concílio vinham proferir de noite para os bispos brasileiros e que, nós, estudantes, íamos furtivamente assistir dos balcões do segundo andar do grande salão de eventos da casa. Ali, pudemos ouvir todos os grandes teólogos do concílio, de Karl Rahner SJ a Henri de Lubac SJ, de Yves Congar OP a Hans Küng, de Edward Schillebeeckx OP, a Bernard Haring CSSR, Joseph Ratzinger, Lebret, OP; bispos como Sergio Mendes Arceo, de Cuernava no México, Alfred Ancel, de Lyon na França, Mons. Bogarín, do Paraguai, ou os Cardeais Leo Suenens, Agostinho Bea, Giacomo Lercaro, Joseph Cardijn ou ainda teólogos protestantes como o professor Oscar Cullman e os monges de Taizé, Max Thurian e Roger Schutz ou ainda membros ou especialistas das Igrejas Orientais: Andrej Scrima, teólogo do Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Athenagoras, Mons. Neophytos Edelby da Igreja Melquita e Frei Christophe René Dumont OP do Centro Istina de Paris. Não faltaram leigos e leigas, auditores do Concílio, entre os quais, Vitorino Veronezzi, o casal mexicano do Movimento Familiar Cristão, José e Luz Alvarez Icaza, o escritor, membro da Academia Francesa de Letras, Jean Guitton e a presidente do Movimento Feminino Internacional dos Meios Independentes, Marie Louise Monnet.
IHU On-Line – O que significou o Concílio Vaticano II na trajetória do pensamento e da teologia de Libânio?
José Oscar Beozzo – A experiência do Vaticano II, seu debate teológico e eclesial, sua postura de diálogo e atenção ao mundo contemporâneo, sua opção ecumênica, permeiam toda a teologia do Libânio. Diria mais, o Vaticano II é elemento estruturante de sua teologia. Esta se enriqueceu depois com toda a perspectiva latino-americana que brotou da experiência das Igrejas no continente, de sua vida religiosa inserida e das grandes Conferências Gerais do Episcopado latino-americano de Medellín a Aparecida.
IHU On-Line – Depois de um período na Europa, Libânio retornou ao Brasil em 1969. Como a realidade brasileira e latino-americana impactou na construção do pensamento de Libânio?
José Oscar Beozzo – Retornando ao Brasil, Libânio (foto) mergulhou na realidade brasileira e também latino-americana. Do ponto de vista pastoral, continua marcante sua inserção numa comunidade de periferia de Belo Horizonte e sua parceria com o falecido Pe. Alberto Antoniazzi na assessoria teológica e pastoral do projeto “Construir a Esperança” que alicerçou o empenho missionário evangelizador para a realidade urbana da região metropolitana Belo Horizonte.
Sua participação na equipe de reflexão teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil - CRB tornou-o parceiro na busca do necessário suporte teológico para as opções pastorais e os desafios da vida religiosa no pós-Vaticano II e na trilha das opções de Medellín e Puebla. Graças ao seu incansável e disciplinado acompanhamento crítico da produção teológica brasileira, latino-americana e internacional, Libânio tornou-se mestre em preparar balanços abrangentes e penetrantes dos rumos da teologia contemporânea. Sobre a CRB deixou-nos um longo estudo, A reflexão teológica sobre a Vida Consagrada – Período de 1980-2000, publicado por Edênio Valle no Memória Histórica. As lições de uma caminhada de 50 anos: CRB – 1954 a 2004 (Rio de Janeiro: CRB, 2004).
Libânio fez parte da equipe de reflexão teológica da Conferência Latino-Americana dos Religiosos - CLAR envolvendo-se em todos os grandes debates pastorais e teológicos da Igreja na América Latina e no Caribe. Quando do Congresso da CLAR, em 2009, foi dado por Libânio um balanço da contribuição teológica da vida religiosa no continente: Vida Consagrada e teologia latino-americana. Saiu publicado no livro de memórias do encontro: Aportes de la Vida Religiosa a la Teología Latinoamericana y del Caribe. Hacia el futuro.
Libânio participou ativamente da grande empreitada de se repensar aqui na América Latina, toda a teologia à luz da libertação e escreveu em parceria com Maria Clara Bingemer, uma de suas discípulas diletas, um dos livros da Coleção Teologia e Libertação, sobre o tema da escatologia cristã.
IHU On-Line – De modo geral, qual a contribuição de Libânio para a caminhada das Comunidades Eclesiais de Base?
José Oscar Beozzo – Junto com um grupo de teólogos, teólogas, biblistas, Libânio acompanhou desde o início (1975) os Encontros Intereclesiais das CEBs. Bem depressa assumiu a tarefa de coordenar a contribuição dos teólogos/as antes, durante e depois dos intereclesiais. Cumpria a tarefa com maestria, distribuindo-os pelos diferentes grupos e plenários para prestarem assessoria caso fossem solicitados, mas também para acompanhar como cronistas cada aspecto do encontro. Incumbia-se ainda da tarefa de provocar a cada um, cada uma, para que, terminado o encontro e dentro de prazos curtos, escrevesse um artigo mais pensado sobre determinados aspectos do intereclesial: suas celebrações, suas reflexões temáticas, seus conflitos, a prática pastoral e a reflexão teológica que emergiam dos relatos. Isso permitiu que de cada intereclesial, as CEBs e a Igreja do Brasil pudessem contar com um volume temático da REB ou da Vida Pastoral ou mesmo de livros que recolheram essas contribuições. Inestimável essa contribuição para que não se perdesse nem a riqueza humana e eclesial destes eventos, mas que seguissem ajudando a iluminar e alimentar a caminhada das CEBs.
IHU On-Line – A partir do pensamento e da prática de Libânio, o que deve continuar repercutindo na caminhada da Igreja?
José Oscar Beozzo – Em tempos de crise no campo da formação em geral, Libânio é um marco referencial pelo menos sob três aspectos:
— O cuidado e atenção que sempre dedicou ao processo de formação de leigos e leigos na Pastoral da Juventude e Universitária, nas pastorais e nas CEBs.
— Seu empenho de toda uma vida na preparação teológica dos estudantes da Companhia de Jesus e de quantos buscavam uma educação teológica séria e aberta, leigos, leigas, ou candidatos à vida presbiteral e religiosa. Esse tirocínio iniciou-se no Pio Brasileiro e prosseguiu nos longos anos de docência no ISI (Instituto Santo Inácio, hoje Faculdade de Teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus). A docência como vocação levou Libânio a ser o mais fecundo autor teológico brasileiro na produção de tratados que pudessem ajudar os estudantes a aprofundar os temas teológicos abordados em sala de aula.
— A preocupação de que a teologia não fosse um exercício abstrato, distante da realidade ou simplesmente acadêmico, voltado para o diálogo com os seus pares, mas que seu diálogo fosse com a vida das pessoas e a pastoral da Igreja.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto que não foi perguntado?
José Oscar Beozzo – Gostaria de enfatizar o legado de Libânio como educador, na linha da maiêutica socrática, introduzindo as pessoas na arte da reflexão e do pensamento regrado, fundamentado e finalmente prático. Destaco duas de suas publicações nessa linha. No A arte de formar-se, Libânio deixa-se guiar pela pergunta: “qual é a arte de formar-se uma inteligência crítica, bem estruturada, em vez de um armazém entulhado de conhecimentos? Como aprender a pensar e a conhecer?”. Libânio aponta o que chama de os cinco pilares da formação: “aprender a conhecer e a pensar, aprender a fazer, aprender a conviver com os outros, aprender a ser e aprender a discernir a vontade de Deus” .
Nesse opúsculo, Libânio já anuncia uma obra mais alentada, na mesma direção, que saiu anos depois pela Loyola: Introdução à vida intelectual. Retoma de certo modo o ambicioso projeto do tomista Sertillanges, com o seu clássico A vida intelectual: espírito, condições, métodos . Acrescenta, entretanto, ao saber teórico do mestre dominicano, sugestões bem práticas, indicando “o caminho das pedras”, para o iniciante nesta difícil e fascinante aventura do conhecimento. Parte da intuição de fundo que não se estuda só com a inteligência: “É todo o ser humano que se compromete com as lides intelectuais” . Divide seu trabalho em duas partes, dedicando a primeira às atitudes fundamentais da vocação intelectual e a segunda a diversos aspectos da vida de estudo: da reunião de grupo, ao estudo de um tema; da produção de uma monografia aos muitos tipos de leitura e ao ensino acadêmico. Para cada um desses pontos, abundam as sugestões práticas de quem já passou por longo tirocínio e aprendizado, acumulando experiência e sabedoria que são partilhadas generosamente.
Fonte: A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, J. B. Libânio. A trajetória de um teólogo brasileiro. Testemunhos, no. 394.
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