Morrer em público, como João Paulo II, ou admitir em
público a dificuldade de renunciar a qualquer
"privacidade", como Bento XVI: assistimos nestes
dias a uma excepcional redefinição do papel do papa na Igreja e no mundo.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de
história do cristianismo da University of St. Thomas, nos EUA.
O artigo foi publicado no sítio HuffPost.it, 27-02-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
O último discurso do Papa
Bento XVI, realizado na Praça de São Pedro na
última audiência geral da quarta-feira, 27 de fevereiro, não é talvez o mais
importante do seu pontificado, do ponto de vista teológico e político, mas
certamente é o mais importante e o melhor proferido por Joseph
Ratzinger como bispo.
Em certo sentido, esse discurso poderia moldar a sua herança e
percepção, e fazer de Bento XVI um papa emérito muito mais
"popular" do que foi como papa na cátedra de Pedro nesses
difíceis oito anos. No discurso, o papa não escondeu as dificuldades
atravessadas pelo pontificado, e não escondeu – coisa notável para um papa – a
sensação de abandono por parte de Deus, a mesma sensação que muitos outros
cristãos sentem em muitos momentos da sua vida.
O discurso não foi isento de acentos típicos dos discursos de João
XXIII, destinados a redimensionar a "mística papal" – aquela
aura de sacralidade criada ao longo dos séculos em todo do papado, não só como
ofício na Igreja, mas também em torno da pessoa. Mas, ao mesmo tempo, o
redimensionamento da mística papal tem um contrapasso, ou seja, o seu papel
universal, e não só para a Igreja ou para os católicos: "O coração de um
papa se alarga ao mundo inteiro". Esse é um dos maiores e mais difíceis
custos para o papa e para o catolicismo contemporâneo, mas que fazem da Igreja
Católica uma antena muito sensível para compreender o mundo global.
Esse discurso representa uma chave de leitura importante para
compreender o papel desse pontificado na Igreja contemporânea. Se, em alguns
aspectos, o pontificado de Bento XVI deve ser lido em
continuidade cultural e teológica com o de João Paulo II, esse
discurso, ao invés, sublinha as suas diversidades: em primeiro lugar, pela
capacidade de despersonalizar o papado ou, melhor, de vivê-lo de modo pessoal,
sem aprisioná-lo dentro de um atletismo místico que não convém a Joseph
Ratzinger.
Em uma chave típica das "humildades institucionais" que há na
teologia do papado desde o Concílio Vaticano II, Bento XVI
enfatizou a dimensão pastoral do ministério: "Eu recebo também
muitíssimas cartas de pessoas simples que me escrevem simplesmente a partir do
seu coração e me fazem sentir o seu afeto, que nasce do estar juntos com Cristo
Jesus, na Igreja. Essas pessoas não me escrevem como se escreve, por exemplo, a
um príncipe ou a um grande que não se conhece. Escrevem-me como irmãos e irmãs,
ou como filhos e filhas, com o sentido de um vínculo familiar muito afetuoso.
Aqui se pode tocar com a mão o que é a Igreja – não uma organização, não uma
associação de fins religiosos ou humanitários, mas sim um corpo vivo, uma
comunidade de irmãos e irmãs no Corpo de Jesus Cristo, que nos une a
todos".
Morrer em público, como João Paulo II, ou admitir em
público a dificuldade, até mesmo para o Papa Bento XVI, de
renunciar a qualquer "privacidade" (termo que hoje talvez entre pela
primeira vez no vocabulário dos pontífices romanos): "o papa pertence a
todos, não pertence mais a si mesmo". São dois modos diferentes, ambos
contraculturais de testemunhar a mensagem cristã ao mundo contemporâneo.
Assistimos nestes dias a uma excepcional redefinição do papel do papa na
Igreja e no mundo. Sobre aquela extraordinária cena do sagrado no Ocidente
que é a praça de São Pedro, em Roma,
o papa se despede do público, mas não da Igreja.
Fonte: IHU On-Line
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