Assunto proeminente no mercado editorial desde a eclosão dos leitores digitais, o futuro do livro – e da leitura – vai ganhar logo duas mesas nesta edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). “O Livro: Capítulo 1” e “O Livro: Capítulo 2” acontecem respectivamente na noite de quinta e na manhã de sexta-feira, com a participação do acadêmico britânico Peter Burke, do executivo John Makinson, da editora Penguin, e do historiador americano Robert Darnton, único especialista a marcar presença nos dois eventos.
Darnton recebeu VEJA Meus Livros para uma conversa em seu hotel, em São Paulo. Por quase uma hora, discorreu sobre o que acredita ser o futuro próximo do livro – não a morte da obra impressa, mas um híbrido entre o papel e o meio digital – e sobre a democratização do conhecimento, outro tema presente em A Questão dos Livros, título lançado no país pela Companhia das Letras. Para o historiador, é preciso reduzir o prazo necessário para o domínio público de um título, dos atuais 70 anos contados desde a morte do autor para até 28 anos após a publicação.
A um autor que está para lançar um livro, o que o senhor recomendaria: publicá-lo em papel ou em formato digital?
Eu diria para publicar em papel e também disponibilizá-lo online, de graça, para que as pessoas possam prová-lo – aquilo que os franceses chama de degustação. Um dos problemas, especialmente para autores que estão começando, é que eles não conseguem emplacar livros nas lojas. Os lojistas não exibem as obras, e ninguém fica sabendo delas. O marketing online pode ser um caminho para impulsionar a venda do livro impresso. Principalmente se o romance for longo, eu duvido que o leiam inteiro na internet.
Não é a hora ainda, portanto, de abandonar o papel?
Não, de modo algum. É incrível, mas as estatísticas mostram que o número de livros impressos no mundo – é fantástico – só fazer crescer, crescer, crescer. Todo ano, há mais livros impressos que no ano anterior. E estou falando de títulos novos. Temos cerca de 1 milhão de títulos novos por ano. Então, a ideia de que o livro impresso está morrendo é uma loucura. Não creio que os livros impressos se tornarão objeto de colecionador, produtos de butique. Acho que teremos livros híbridos, ao mesmo tempo impressos e eletrônicos. Prevejo um período em que eles irão coexistir. O livro impresso é uma invenção maravilhosa, e ele funciona tão bem há tanto tempo.
E quanto à força demonstrada pelo livro eletrônico? A Amazon anunciou que já vendendo mais e-books do que títulos em papel.
Pelo estudo da história da comunicação, que é o meu campo acadêmico, nós aprendemos que uma mídia não substitui outra. Nós tivemos jornais e veio o rádio e não matou os jornais, como a TV não matou o rádio. Agora, nós temos a internet, e a TV está sobrevivendo. É claro que, num longo prazo, uma mídia pode expirar. Mas não num curto espaço de tempo. E uma coisa interessante na história dos livros é que, após a descoberta da prensa por Gutemberg, foram publicados mais livros manuscritos que antes. Então, Gutemberg não destruiu as publicações manuais, mas lhes deu nova força. Os dois formatos coexistiram por um período.
O senhor reconhece o potencial que a internet tem de fazer avançar os ideais do Iluminismo. Ao mesmo tempo, é crítico dos limites impostos a esse avanço. Quais são os maiores inimigos da República das Letras em sua versão digital?
Eu admiro a ideia de uma República das Letras, desenvolvida nos séculos XVII e XVIII. Ela representa um mundo aberto a todos. É uma ideia bonita e acredito que a internet a torne possível. A internet tem condições de democratizar a informação. Mas há também os inimigos que impedem essa democratização na rede. Em primeiro lugar, tem a questão dos direitos autorais, que limitam o acesso aos livros. Segundo, há um perigoso comércio online, que vai contra o ideal original da web, de livre acesso à informação. Em terceiro lugar, tem o Google, capaz de comercializar o acesso ao conhecimento pelo Google Book Search, em que é preciso pagar para ler livros que não sejam de domínio público.
O Google se tornou um gigante na internet. Como fazer frente a ele?
Eu faço parte da campanha para a criação de uma Biblioteca Digital Nacional nos Estados Unidos, com o acervo da Biblioteca do Congresso Americano – que é a maior do mundo, com 21 milhões de exemplares, incluindo livros brasileiros em português -, ao qual usuários do Brasil, por exemplo, poderiam ter livre acesso. Nós podemos fazer isso com a união de fundações independentes que desejem colaborar com o projeto. Uma fundação sozinha não tem recursos suficientes, mas dez juntas podem ter. E não é preciso fazer tudo de uma vez, podemos digitalizar o acervo ao longo de dez anos. No dia 1ª de outubro, eu participo de uma conferência em Harvard (Darnton é diretor da biblioteca de Harvard), em que líderes de fundações e instituições culturais vão discutir essa contribuição e tentar criar uma alternativa ao Google. Na internet, hoje, podemos ler de graça os livros que são de domínio público. Mas acho que podemos ir além disso, e ler de graça também os livros protegidos por direitos autorais. Você pode me dizer que isso viola a lei dos direitos autorais, e aí eu respondo: vamos mudar essa lei.
Na sua opinião, qual o prazo ideal para o início do domínio público?
Hoje, o domínio público começa setenta anos após a morte do autor. Nós deveríamos discutir isso. Para mim, o ideal é o que está na primeira lei americana a respeito de direitos autorais, do final do século XVIII. A lei previa que os direitos autorais durassem 14 anos, renováveis uma vez. Eu acho ótimo.
Digitalizar todos os livros do mundo é um trabalho hercúleo, além de caro. É uma tarefa para governos?
Sim, é uma missão para o estado. Mas, nos EUA, acho difícil convencer o Congresso a investir nesse projeto. Ele injeta muito dinheiro em guerra, mas não em livros. É por isso que, quando eu descrevo o plano de criar uma Biblioteca Digital Nacional, eu digo que precisamos das fundações.
Quanto custaria o projeto da Biblioteca Digital Nacional?
Esta é uma boa questão, e é muito difícil de responder, porque há muitas estimativas sobre o preço de digitalizar uma página. Um expert diz que se digitaliza uma página por dez centavos. E há muitos que dizem que se gasta muito mais. Mas, mesmo que o projeto todo custe 1 bilhão de dólares, se parcelarmos o valor em dez anos, não é tanto quanto o que se investe numa guerra. Em termos econômicos, esse não é um projeto extravagante. Mas, politicamente, pode ser impossível.
Alguns críticos da cultura digital apontam uma incompatibilidade entre a ideia clássica de leitura e o déficit de atenção que seria inerente ao próprio meio, com seus hiperlinks e excesso de informações. A humanidade está mudando para uma nova forma de ler, mais abrangente, mas também menos reflexiva?
Há algo na busca por palavras, por parte dos estudantes, que produz superficialidade. Eles nem sempre leem livros da capa à contracapa. A busca por palavras os leva para o meio do texto, e eles encontram ali o que acham relevante. Isso descontextualiza a leitura, eles apenas pescam algumas informações e não entendem o livro como um todo. Nesse sentido, eu concordaria com a tese. Mas, estudando a história dos livros, a gente tem algumas surpresas. Boa parte da leitura já era fragmentada no passado. As pessoas não tinham instrumentos de busca por palavra, mas sabiam como localizar passagens que eram relevantes para as suas necessidades particulares. A gente costuma ter a ilusão romântica da era de ouro em que as pessoas eram mestres dos livros. Não eram. E devo reconhecer que a busca por palavras é sensacional. Você pode atravessar um enorme corpo de literatura e encontrar coisas que você nunca veria se lesse livro a livro, do começo ao fim. Há vantagens e desvantagens. O saldo eu não sei qual é.
Fonte: Veja Meus livros
Maria Carolina Maia
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