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domingo, 10 de março de 2013

O professor eleito papa continuou ensinando



"A biografia intelectual de quem se destaca pelo conhecimento começa por seus mestres. E do erudito professor e papa Ratzinger, dado a leituras seletas, seu mestre desde a juventude foi Agostinho. Como o seu modelo, tem uma expressão clara, lógica, refinada", escreve Luiz Carlos Susin, frei capuchinho, doutor em teologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 01-03-2013.
Segundo ele, "seu pensamento político segue também de perto Agostinho..." 

Eis o artigo.
A expressão tradicional era papa reinante. João Paulo II foi um papa de governo pastoral. Mas Bento XVI é um professor que também se tornou papa, e se tornou um papa do ensinamento, da doutrina. Para dentro da Igreja, seu marco doutrinal foi o Catecismo da Igreja Católica, não só porque era presidente da comissão que trabalhou seis anos em sua elaboração, mas porque vigiou e deu a última redação do texto. Pode-se dizer que este catecismo é de Bento XVI, como o catecismo que seguiu o Concílio de Trento - e durou quatro séculos - foi chamado de Catecismo de Pio V.
Já para fora de Igreja, Bento XVI confiou na razão grega, um pouco aristotélica, confiando muito na lei natural que se atinge mais pelos raciocínios lógicos do que pelos métodos das ciências modernas. Mas um pouco mais platônico, de sabor dualista, pelo viés de Santo Agostinho.
A biografia intelectual de quem se destaca pelo conhecimento começa por seus mestres. E do erudito professor e papa Ratzinger, dado a leituras seletas, seu mestre desde a juventude foi Agostinho. Como o seu modelo, tem uma expressão clara, lógica, refinada. E também como o seu modelo, tem momentos poéticos em seus textos, desde a parábola sobre o teólogo no começo de um de seus mais belos escritos de juventude, Introdução ao Cristianismo.
O teólogo é como o célebre palhaço que corre a cidade para anunciar que há fogo devorando tudo, mas a população se burla dele porque aparece como palhaço. Dessa forma, por um lado, Ratzinger tomou uma posição de justificação de eventual inadequação. Por outro lado, aplicava a parábola ao teólogo nos célebres anos em torno de 1968.
Depois de uma meteórica ascensão no ensinamento, passando pela assessoria ao Concílio Vaticano II, ele estava em Tübingen, o topo onde um teólogo alemão pode chegar. O clima de 1968 e as reivindicações do "proibido proibir" o fizeram recuar para a sua Baviera de origem, para Ratisbona (Regensburg). Levou consigo a justificativa da sua parábola, fez uma comentada conferência sobre "Por que permaneço na Igreja", afirmando que ele continuaria "dentro" da Igreja e não "paralelo" à Igreja.
E logo em seguida, também meteoricamente, começou sua carreira hierárquica, de forma inusitada, diretamente para o Arcebispado de Munique, sede cardinalícia. Quando, finalmente, João Paulo II o convidou para o cargo da presidência da Congregação para a Doutrina da Fé, ele fez apenas um pedido, o de poder continuar a escrever e publicar com sua marca pessoal. Mas, de qualquer forma, ao longo das quase três décadas, ele misturou sua marca pessoal com o cargo de guarda da ortodoxia da fé.
Sua marca pessoal tem o sabor do dualismo agostiniano renovado com uma pitada de colorido conservadorismo católico tipicamente bávaro, e por isso emocionalmente antiprotestante na dolorida divisão alemã após a Reforma.
O que aparece mais, no entanto, é seu pessimismo antropológico, algo muito agostiniano, de tal forma que se tem a impressão de que, para glorificar mais a grandeza da graça divina, é necessário pintar quão fundas são as trevas humanas. Esse pessimismo é contínuo e aplica-o, sobretudo, ao mundo moderno secularizado e religiosamente confuso.
A Europa perdeu sua alma, em sua análise, e por isso também sua liderança espiritual. E o resto do mundo tem muita religião que gera confusão. "Purificar" é palavra-chave em muitas de suas intervenções sobre evangelização e sobre moral. Em uma temporada de férias nos Alpes, ele disse à imprensa local que vinha tomar um ar puro de montanha porque em Roma se via obrigado a estar em contato contínuo com as patologias da fé.
Seu pensamento político segue também de perto Agostinho, o forjador da política da cristandade medieval. Por isso a Teologia da Libertação que se levantou da América Latina lhe pareceu subversiva e confusa com o marxismo, mas lhe foi muito natural tomar um café com George Bush na Casa Branca.
No entanto, como em Agostinho, o seu pessimismo tem um limite em Deus mesmo: a sua criatura não pode se perder de todo, e por isso a sua aposta na razão e na lei natural são as suas armas de diálogo, mesmo que ele teime com os cientistas de que a razão científica moderna é menos do que a razão dos grandes conceitos universais em que só a filosofia pode ajudar, e até onde pode ir, porque, também como em Agostinho, a fé vai mais adiante.
Nesse sentido, é sintomático o seu lema episcopal, que continua válido também como bispo de Roma: a verdade acima de tudo, embora Agostinho veja no amor a maior verdade. Por enquanto Bento XVI, com a encíclica Caritas in veritate - "O Amor na Verdade" -, coloca o amor no âmbito da verdade, não a verdade no âmbito do amor. Ele mesmo comentou o seu lema episcopal, "Colaborador da verdade": "Parecia-me, por um lado, encontrar nele a ligação entre a tarefa anterior de professor e a minha nova missão; o que estava em jogo, e continua a estar - embora com modalidades diferentes - é seguir a verdade, estar ao seu serviço. E, por outro lado, escolhi este lema porque, no mundo atual, omite-se quase totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem; e, todavia, tudo se desmorona se falta a verdade".
Seu eros intelectual se parece mais com os gregos do que com os profetas. Foi altamente sintomático o diálogo que manteve com os que o arrumavam para uma fotografia oficial. Vendo que ele parecia não fazer muito caso disso, alguém lhe disse: "Santidade, uma imagem vale mil palavras". E ele respondeu: "E um conceito vale mais que mil imagens!"
Nem mesmo com a monotonia da sua voz ele se perturba: a verdade, a doutrina, tem uma objetividade e uma eficácia por si mesma, como um sacramento.
Ao começar seu tempo de papa, seu programa doutrinário estava traçado, é a Declaração Dominus Jesus, em que ele organiza a hierarquia da verdade: no topo está o único que pode salvar, Jesus; no meio está o lugar pelo qual se chega a ele, a Igreja Católica; na base estão os que precisam fazer conexão com a Igreja como caminho de salvação.
Jesus não é como os demais, a Igreja Católica também não é como as demais. Esta é a verdade central, tradicional, pela qual ele é papa.

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