"A biografia intelectual de quem se destaca pelo conhecimento
começa por seus mestres. E do erudito professor e papa Ratzinger,
dado a leituras seletas, seu mestre desde a juventude foi Agostinho.
Como o seu modelo, tem uma expressão clara, lógica, refinada", escreve Luiz Carlos Susin, frei capuchinho,
doutor em teologia e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUC-RS, em artigo publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, 01-03-2013.
Segundo ele, "seu pensamento político segue também de perto Agostinho..."
Eis o artigo.
A expressão tradicional era papa reinante. João Paulo II foi
um papa de governo pastoral. Mas Bento XVI é um professor que
também se tornou papa, e se tornou um papa do ensinamento, da doutrina. Para
dentro da Igreja, seu marco doutrinal foi o Catecismo da Igreja
Católica, não só porque era presidente da comissão que trabalhou seis
anos em sua elaboração, mas porque vigiou e deu a última redação do texto.
Pode-se dizer que este catecismo é de Bento XVI, como o
catecismo que seguiu o Concílio de Trento - e durou quatro
séculos - foi chamado de Catecismo de Pio V.
Já para fora de Igreja, Bento XVI confiou na razão
grega, um pouco aristotélica, confiando muito na lei natural que se atinge mais
pelos raciocínios lógicos do que pelos métodos das ciências modernas. Mas um
pouco mais platônico, de sabor dualista, pelo viés de Santo Agostinho.
A biografia intelectual de quem se destaca pelo conhecimento começa por
seus mestres. E do erudito professor e papa Ratzinger, dado a
leituras seletas, seu mestre desde a juventude foi Agostinho.
Como o seu modelo, tem uma expressão clara, lógica, refinada. E também como o
seu modelo, tem momentos poéticos em seus textos, desde a parábola sobre o
teólogo no começo de um de seus mais belos escritos de juventude, Introdução
ao Cristianismo.
O teólogo é como o célebre palhaço que corre a cidade para anunciar que
há fogo devorando tudo, mas a população se burla dele porque aparece como
palhaço. Dessa forma, por um lado, Ratzinger tomou uma posição
de justificação de eventual inadequação. Por outro lado, aplicava a parábola ao
teólogo nos célebres anos em torno de 1968.
Depois de uma meteórica ascensão no ensinamento, passando pela
assessoria ao Concílio Vaticano II, ele estava em Tübingen,
o topo onde um teólogo alemão pode chegar. O clima de 1968 e as reivindicações
do "proibido proibir" o fizeram recuar para a sua Baviera de origem,
para Ratisbona (Regensburg). Levou consigo a justificativa da
sua parábola, fez uma comentada conferência sobre "Por que
permaneço na Igreja", afirmando que ele continuaria
"dentro" da Igreja e não "paralelo" à Igreja.
E logo em seguida, também meteoricamente, começou sua carreira
hierárquica, de forma inusitada, diretamente para o Arcebispado de Munique,
sede cardinalícia. Quando, finalmente, João Paulo II o
convidou para o cargo da presidência da Congregação para a Doutrina da
Fé, ele fez apenas um pedido, o de poder continuar a escrever e
publicar com sua marca pessoal. Mas, de qualquer forma, ao longo das quase três
décadas, ele misturou sua marca pessoal com o cargo de guarda da ortodoxia da
fé.
Sua marca pessoal tem o sabor do dualismo agostiniano renovado com uma
pitada de colorido conservadorismo católico tipicamente bávaro, e por isso
emocionalmente antiprotestante na dolorida divisão alemã após a Reforma.
O que aparece mais, no entanto, é seu pessimismo antropológico, algo
muito agostiniano, de tal forma que se tem a impressão de que, para glorificar
mais a grandeza da graça divina, é necessário pintar quão fundas são as trevas
humanas. Esse pessimismo é contínuo e aplica-o, sobretudo, ao mundo moderno
secularizado e religiosamente confuso.
A Europa perdeu sua alma, em sua análise, e por isso também sua
liderança espiritual. E o resto do mundo tem muita religião que gera confusão.
"Purificar" é palavra-chave em muitas de suas intervenções sobre
evangelização e sobre moral. Em uma temporada de férias nos Alpes, ele disse à
imprensa local que vinha tomar um ar puro de montanha porque em Roma se via obrigado
a estar em contato contínuo com as patologias da fé.
Seu pensamento político segue também de perto Agostinho,
o forjador da política da cristandade medieval. Por isso a Teologia da
Libertação que se levantou da América Latina lhe pareceu subversiva e
confusa com o marxismo, mas lhe foi muito natural tomar um café com George
Bush na Casa Branca.
No entanto, como em Agostinho, o seu pessimismo tem um
limite em Deus mesmo: a sua criatura não pode se perder de todo, e por isso a
sua aposta na razão e na lei natural são as suas armas de diálogo, mesmo que
ele teime com os cientistas de que a razão científica moderna é menos do que a
razão dos grandes conceitos universais em que só a filosofia pode ajudar, e até
onde pode ir, porque, também como em Agostinho, a fé vai mais
adiante.
Nesse sentido, é sintomático o seu lema episcopal, que continua válido
também como bispo de Roma: a verdade acima de tudo, embora Agostinho veja
no amor a maior verdade. Por enquanto Bento XVI, com a
encíclica Caritas in veritate - "O Amor na Verdade"
-, coloca o amor no âmbito da verdade, não a verdade no âmbito do amor. Ele
mesmo comentou o seu lema episcopal, "Colaborador da verdade":
"Parecia-me, por um lado, encontrar nele a ligação entre a tarefa anterior
de professor e a minha nova missão; o que estava em jogo, e continua a estar -
embora com modalidades diferentes - é seguir a verdade, estar ao seu serviço.
E, por outro lado, escolhi este lema porque, no mundo atual, omite-se quase
totalmente o tema da verdade, parecendo algo demasiado grande para o homem; e,
todavia, tudo se desmorona se falta a verdade".
Seu eros intelectual se parece mais com os gregos do que com os
profetas. Foi altamente sintomático o diálogo que manteve com os que o
arrumavam para uma fotografia oficial. Vendo que ele parecia não fazer muito
caso disso, alguém lhe disse: "Santidade, uma imagem vale mil
palavras". E ele respondeu: "E um conceito vale mais que mil
imagens!"
Nem mesmo com a monotonia da sua voz ele se perturba: a verdade, a
doutrina, tem uma objetividade e uma eficácia por si mesma, como um sacramento.
Ao começar seu tempo de papa, seu programa doutrinário estava traçado, é
a Declaração Dominus Jesus, em que ele organiza a hierarquia
da verdade: no topo está o único que pode salvar, Jesus; no meio está o lugar
pelo qual se chega a ele, a Igreja Católica; na base estão os que precisam
fazer conexão com a Igreja como caminho de salvação.
Jesus não é como os demais, a Igreja Católica também não é como as
demais. Esta é a verdade central, tradicional, pela qual ele é papa.
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