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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Conjuntura sobre o papa Francisco em Lampedusa

CEPAT*

Lampedusa, a primeira “encíclica” de Francisco
Em Lampedusa começa o pontificado de Francisco. Não em ordem cronológica, mas de importância e significação de seu ato (kairós). Lampedusa é a primeira “encíclica” de Francisco. Não é uma encíclica escrita, mas uma encíclica em ato, em gestos. Nesta encíclica, “o ministério petrino se despe das suas vestes monárquicas para se tornar encontro com a pessoa humana”, como diz Christian Albini.

Sumário
Lampedusa, a “encíclica” com a cara de Francisco
Lampedusa. A ilha dos sem paradeiro
A decisão de Francisco por Lampedusa
Símbolos que gritam por si
Discurso simples, mas direto e profético
“Rezar não é governar”. As críticas

Eis a análise.

Lampedusa, a “encíclica” com a cara de Francisco

Em Lampedusa começa o pontificado de Francisco. Não em ordem cronológica, mas de importância e significação de seu ato (kairós). Lampedusa é a primeira “encíclica” de Francisco. Não é uma encíclica escrita, mas uma encíclica em ato, em gestos. Nesta encíclica, “o ministério petrino se despe das suas vestes monárquicas para se tornar encontro com a pessoa humana”, como diz Christian Albini.

Esta encíclica é diferente da outra, a Lumen Fidei, escrita por Ratzinger, mas, na caridade, assumida por Francisco, para, de acordo com Marco Politi ser “enviada para ser impressa e enterrá-la”. A de Lampedusa, ao contrário, tem a sua cara. Nela palpita seu coração. Nela transparece e reluz o seu programa.

O pontificado de Francisco já representa uma “mudança de rota”. “São ações que têm um coração, uma palavra, que narram um modo de estar à frente da Igreja que visa a inverter o ponto central até agora inerente à figura do pontífice, às quais todos tendem e que agora contam os lugares dos últimos, as periferias a serem lidas não só em sentido geográfico, mas também como os espaços daqueles que estão às margens. Os pobres como o novo centro desta Igreja”, na opinião é de Nicola Zingaretti, presidente da região do Lazio e ex-presidente da província de Roma, na Itália.

Mesmo tendo passados apenas um pouco mais de 100 dias do seu pontificado, muitos aspectos poderiam ser objeto de uma análise mais aprofundada. Entretanto, por uma questão prática (delimitar o amplo material de análise disponível), mas sobretudo por uma questão de importância simbólica e programática, circunscreveremos a presente à visita do Papa Francisco à ilha de Lampedusa.

Lampedusa. A ilha dos sem paradeiro

Lampedusa é uma ilha italiana com belas paisagens naturais, localizada no sul do Mediterrâneo. Fica mais próxima da Tunísia do que da Sicília e, uma vez que sua distância da costa do norte da África não ultrapassa em muito os 100 km, tornou-se rota de passagem para a Europa, principalmente de pessoas refugiadas. Nesta ilha, “há mais de 20 anos, tocam-se os extremos da cada vez menos rica Europa e do cada vez mais deserdado povo dos condenados da terra. Só em 2011 lá desembarcaram mais de 50 mil pessoas”.

Provenientes de áreas de conflito, com a vida em risco em seus países de origem, sejam pelas mais diversas causas, especialmente pelas guerras e fome, homens, mulheres e crianças acabam não tendo outra opção a não ser partir de suas terras. Assim, arriscam-se em embarcações precárias rumo a melhores condições de vida. São muitos os que padecem no mar. Fala-se em cerca de 20 mil mortos no mar e de aproximadamente 200.000 pessoas que já passaram pela ilha.

Dentre essas tragédias e a capacidade brutal da ação humana, pode ser citado, por exemplo, a situação desencadeada, em 2011, a partir do conflito na Líbia. De acordo com matéria organizada por Ricardo Machado, “em 2011, quando foi deflagrado o conflito entre a sociedade civil e o governo de Muamar Khadafi, o Estado líbio usava pessoas como ‘bombas’, enviando-as ao velho continente para pressionar a comunidade europeia para não apoiar os insurgentes. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações – OIM, muitos dos imigrantes enviados a Lampedusa foram obrigados pelas forças de Khadafi a subir em barcas precárias para atravessar o Mediterrâneo. A munição humana como estratégia de guerra provocou, entre outras razões, o naufrágio de um barco com 600 fugitivos”.

John L. Allen Jr., em reportagem publicada no sítio National Catholic Reporter, enfatiza que “para os europeus, especialmente para os italianos, a ilha de Lampedusa, no sul do Mediterrâneo, tornou-se o que os desertos ao longo da fronteira entre o México e os Estados Unidos são para os norte-americanos – o cenário de terríveis tragédias humanitárias, enquanto migrantes desesperados tentam alcançar uma vida melhor, assim como uma metáfora para as tensões políticas e culturais em torno da política de imigração”.

De fato, esta é uma trágica situação que diz respeito a todos. Um tema que escancara plenamente a indiferença e a morosidade dos países em relação aos dramas humanitários vivenciados por estas pessoas, além de significar um esfacelamento total da solidariedade entre os povos.

Na maioria dos países, nega-se sistematicamente a garantia de direitos para os homens e mulheres que tiveram que abandonar suas terras. Por exemplo, na opinião da presidente da Câmara de Deputados italiana, Laura Boldrini, “é um anacronismo perigoso o fato de que uma lei sobre a cidadania [italiana] não reconheça que na Itália vivem quatro milhões de imigrantes aos quais os direitos civis são negados”.

A situação dos imigrantes e refugiados é desconcertante e clama aos céus. Nas palavras do missionário jesuíta Paulo Welter, que já foi diretor nacional do Serviço Jesuíta aos Refugiados – SJR – em Angola, “os refugiados provocam muitas inquietudes diante da legislação em vigor em certos países que se ‘protegem’ impedindo e ou negando a dignidade de vida ao seu irmão e semelhante. Pois estas pessoas apenas têm uma opção: proteger suas vidas em outro país uma vez que o seu não mais garante a mínima proteção e os direitos básicos de vida”.

E é para com essas pessoas que o Papa Francisco, assim como Jesus diante das multidões famintas, sentiu compaixão, e, como um irmão, quis se aproximar, ouvir e consolar. Esta saga merece ser contada desde o seu início.

A decisão de Francisco por Lampedusa

O Papa Francisco demonstrou atenção e interesse pelo fenômeno das migrações logo que assumiu o pontificado ao aceitar prontamente o convite para visitar o Centro Astalli, uma estrutura de acolhimento dos jesuítas aos refugiados em Roma. Naquela ocasião, o padre jesuíta Giovanni La Manna, do Serviço Jesuíta aos Refugiados, parecia não acreditar que tivesse recebido, pessoalmente, uma ligação do próprio Papa confirmando a visita. “Sentir-se encorajado por um papa que pede uma Igreja pobre para os pobres também nos ajuda a redescobrir o entusiasmo e a alegria de gastar a nossa vida no serviço de ajuda aos pobres”, disse, então, La Manna. Era apenas o prenúncio daquilo que estava por vir: a visita a Lampedusa.

Ainda era o mês de março quando Francisco, que também é “um filho da imigração”, recebeu uma carta de Stefano Nastasi, pároco em Lampedusa, convidando-o para conhecer a ilha. Com uma linguagem tocante, Nastasi escreveu: “As lágrimas que marcam os rostos das pessoas resgatadas do mar falam de sol e de sal, de arrepios de frio e de fome”. Em seguida, desferiu palavras que não poderiam deixar de despertar o que no coração do Papa parece ser abundante, a compaixão: “Eu gostaria de pensar que as lágrimas dos seus olhos, que fluíram no momento da sua eleição, poderiam se encontrar com as lágrimas de todo homem e de toda mulher que sofrem nos quatro cantos do mundo”.

Passaram-se alguns meses, de muito trabalho, audiências, pronunciamentos e de arrancada em reformas importantes na Cúria Romana, contudo, nada fez o Papa se esquecer do convite e superando as expectativas tornou o mesmo a razão de sua primeira viagem. Assim, Lampedusa que muitos prefeririam ocultar, fazer de conta que não existe, tornou-se um ponto de partida para Francisco.

Com esta visita, o Papa Francisco inaugurou o que o vaticanista Giacomo Galeazzi chamou de pontificado “on the road”. Com algumas características próprias do estilo Bergoglio: improvisado, autônomo e simples. Francisco não quis seguir os protocolos curiais, dispensou a mediação da Secretaria de Estado e acertou tudo sobre a viagem com o próprio arcebispo de Agrigento, Francesco Montenegro, responsável pelo pastoreio na ilha. A visita do Papa não nasce de um acordo entre autoridades, mas, sim, da gritante situação dos refugiados que, em meados de junho, protagonizaram mais um naufrágio entre tantos outros na história desta rota de passagem. Neste sentido, trata-se de um gesto em favor dos imigrantes e refugiados. Como bem destacou Galeazzi, “o pontificado itinerante de Francisco começa onde a sua ‘Igreja pobre para os pobres’ experimenta cotidianamente a fronteira do desconforto”.

Também por isso, o Papa dispensou a presença de autoridades políticas. Quis dar ao encontro com os pequeninos de Lampedusa um caráter discreto, particular. Não foi à ilha como um chefe de Estado, mas como um companheiro das vítimas da indiferença. Apenas a prefeita Giusi Nicolini, o pároco e o bispo de Agrigento, dom Francesco Montenegro, foram os que o acompanharam. “É o caráter pastoral da breve visita do Pontífice a uma das mais dramáticas ‘periferias existenciais’, onde muitas vezes a humanidade é ofendida, que exclui o encontro com políticos e com as autoridades, mesmo as religiosas”. Como bem pronunciou dom Montenegro: “Os irmãos migrantes sobre os quais muitas vezes se fazem julgamentos pesados verão que alguém vai com simplicidade e com afeto dizer que está do seu lado”.

 “Quantas mãos apertadas pelo Papa, quantas histórias ouvidas, quantos olhares cruzados. Ele só quis humildes pescadores e gente de Lampedusa”. Esta viagem evidenciou que a força de Francisco está em sua opção pelos que nada possuem de força, nem econômica, nem política, nem de direitos básicos. São os recriminados da terra.


Símbolos que gritam por si

Desde os primeiros gestos como pontífice – quando apareceu, recém-eleito, na sacada do Vaticano, vestido de branco e sem os trajes característicos deste cargo e cativando o povo com suas palavras simples e pedindo que o povo abençoe o seu pontificado – Francisco não parou de recorrer ao simbólico.

A viagem a Lampedusa – considerada “a ilha dos desesperados e dos últimos” ou “o inferno do Mediterrâneo” – é em si mesma simbólica. Perdida no meio do mar, sem representar nenhuma potência econômica ou política, considerada um cemitério de náufragos ou um refúgio de sobreviventes, essa ilha foi a razão da primeira viagem do Papa Francisco. Não entrará para a história pelos muitos discursos ali proferidos, nem pelos encontros com as autoridades, nem pelos muitos dias que durou. Na verdade, durou apenas algumas horas.

As poucas horas que a viagem durou foram marcadas por gestos simbólicos e palavras, com potencial de prolongar e fazer ecoar essa viagem. A chegada à ilha foi simples. Logo pegou uma embarcação e no meio da viagem pediu para parar. Tomou nas mãos uma coroa de crisântemos amarelos e, em profundo silêncio de oração, jogou-a ao mar – essas mesmas águas que já tragaram milhares e milhares de vidas humanas.

Na chegada ao cais, um dos migrantes, trêmulo de emoção e com dificuldades, conseguiu ler uma breve saudação em árabe, que, também a duras penas, outro companheiro ia traduzindo para o italiano. Ao final, recebe um caloroso abraço do papa dos migrantes. Em seguida, dirige-se ao campo esportivo, onde centenas de pessoas o aguardam para a missa. As primeiras fileiras são ocupadas não pelas autoridades, que, caso queiram participar, precisam misturar-se aos fiéis, mas por migrantes, deficientes e crianças. O tom é penitencial – dado pelas vestimentas roxas e confirmado pelas palavras do Papa e por sua postura recolhida e de cabeça baixa.

Mas a revolução que o Papa Francisco está fazendo na liturgia não se detém na assembleia. Ela sobe ao centro do espaço litúrgico e transfigura os objetos litúrgicos. O altar  e o ambão são feitos da madeira de restos de embarcações que naufragaram; o cálice, também de madeira, ostenta um enorme cravo, recordando os crucificados de ontem e de hoje e em muitas circunstâncias; um timão enfeita a frente do altar; até o báculo  usado pelo Papa foi feito de madeira de restos de barcos. O motivo está claro: tornar visíveis os sofrimentos de milhares de migrantes que perdem suas vidas no mar em embarcações superlotadas ou mesmo escondidos em gaiolas, na esperança de aportarem em terras menos inóspitas e mais hospitaleiras. Que revolução, quando comparado com a pompa, a extravagância e o rigorismo das rubricas, de pontificados anteriores!


Discurso simples, mas direto e profético

A primeira viagem de Francisco tinha um objetivo claro: sacudir a consciência de todos – cristãos, curiais, políticos – perante um gravíssimo problema do século XXI: “a indiferença do holocausto do mar”. Uma ocasião como essa merecia não apenas gestos à altura, mas também palavras. Não quaisquer palavras, mas palavras que tocassem o coração e a consciência. E se, por um lado, a missa celebrada na ilha foi de perdão, por outro, foi também uma celebração de funeral de cerca de 25.000 vítimas das chamadas “viagens da esperança”. “Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias?”, pergunta o Papa. Ele foi à ilha justamente com a intenção de “chorar os mortos”, de chorar por aqueles que ninguém chora.

As palavras iniciais da homilia do Papa em Lampedusa expressam a preocupação central que o incomodava e que está por trás desta viagem. Lia as manchetes dos jornais noticiando naufrágios de barcos lotados de migrantes fugitivos. “E então senti o dever de vir aqui hoje para rezar, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu. Que não se repita, por favor”, disse o Papa Francisco.

E apela para um dos frutos nefastos da globalização para encontrar as razões desta situação. “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de ‘padecer com’: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!”. “Habituamo-nos – prossegue o Papa – ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”. E isso porque “a globalização da indiferença torna-nos a todos ‘inominados’, responsáveis sem nome nem rosto”.
 
Esta globalização da indiferença nos torna insensíveis em todos os sentidos: aos clamores da Terra e dos pobres. “Muitos de nós – e neste número me incluo também eu – estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com os outros. E, quando esta desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se a tragédias como aquela a que assistimos”, denuncia Francisco.

Neste momento e para ilustrar suas palavras, recorre à história do vilarejo de Fuente Ovejuna, narrada pelo dramaturgo e poeta espanhol Félix Lope de Vega (1562-1635). Conta a comédia que os habitantes deste local matam o Governador, porque era um tirano, mas fazem-no de tal modo que não se saiba quem executou a sua morte. E, quando o juiz do rei pergunta "quem matou o Governador", todos respondem: "Fuente Ovejuna, senhor". “Todos e ninguém! Também hoje assoma intensamente esta pergunta: Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, certamente não eu. Mas Deus pergunta a cada um de nós: ‘Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?’", reflete o Papa, para em seguida acrescentar: “Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna”.

Para este pecado social e estrutural, o Papa Francisco pede o perdão de Deus: “Senhor, nesta Liturgia, que é uma liturgia de penitência, pedimos perdão pela indiferença por tantos irmãos e irmãs; pedimo-Vos perdão, Pai, por quem se acomodou e se fechou no seu próprio bem-estar que leva à anestesia do coração; pedimo-Vos perdão por aqueles que, com as suas decisões a nível mundial, criaram situações que conduzem a estes dramas. Perdão, Senhor!”

E conclui sua homilia com uma súplica feita a Deus: ”“Senhor, fazei que hoje ouçamos também as tuas perguntas: ‘Adão, onde estás? Onde está o sangue do teu irmão?’. Que é também uma petição de mudança de atitude, uma metanoia. Um pedido de compromisso de solidariedade e de compaixão da nossa geração.

Como chama a atenção o vaticanista Marco Politi, “note-se como o léxico tão cheio de frescor e cru do pontífice chega logo à compreensão de todos aqueles que, no norte e no sul do mundo, são esmagados pela crise”.


“Rezar não é governar”. As críticas

As resistências e as críticas aos gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco são praticamente coetâneas ao seu pontificado. Elas são internas e externas à Igreja, internas e externas à cúria romana. Tanto é assim que alguns analistas já se perguntam se Francisco terá realmente as forças e os apoios necessários para avançar em suas reformas, algumas necessárias e urgentes.

As críticas e resistências ao modo de Francisco celebrar, já foram objeto da nossa primeira análise sobre o pontificado de Francisco. E vêm dos setores mais conservadores de dentro da Igreja católica. Esses mesmos setores que agora torcem o nariz diante da missa, simples e despojada, celebrada por Francisco na ilha de Lampedusa. Na própria cúria há críticas veladas ao seu jeito de exercer o ministério petrino. Na opinião destes críticos, Francisco deve deixar de ser o pároco de uma Igreja particular da América Latina para se convencer de que é o Papa da Igreja universal – ele que desde a primeira hora se autodenomina “bispo de Roma”. Ideia reforçada pelo fato de ter se recusado a morar no palácio pontifício e preferir a Casa Santa Marta, mais simples e resguardada dos corredores vaticanos. Além disso, pesa sobre ele a pecha de que é fraco teologicamente, porque gosta de improvisar em suas homilias, por exemplo.

Especificamente, a visita do Papa a Lampedusa foi motivo de duras críticas por parte de políticos italianos. Fabrizio Cicchitto, presidente da Comissão de Assuntos Externos da Câmara italiana, foi o primeiro e um dos mais irritados. Ele reconheceu que o papa "desenvolveu uma reflexão de alto nível", mas, diz, "uma coisa é a pregação religiosa, outra é a gestão por parte do Estado de um fenômeno tão difícil. Mesmo nesta circunstância, deve ser afirmava uma razoável, não extremista, mas séria e real autonomia do Estado e da Igreja".

O vice-presidente do Senado italiano, Roberto Calderoni, por sua vez, diz: "No Estado do Vaticano, há o rechaço [dos criminosos e ilegais] por meio da força pública, além da prisão. A pregação do Santo Padre, como tantas outras vezes, foi bonita e tocante, mas as leis são outra questão, como demonstram as que estão em vigor no Vaticano". Ou seja, rezar não é governar.

Mas há reações ainda mais cáusticas. A "católica" Laura, por exemplo, se diz indignada porque "eu nunca ouvi o papa se preocupar com os massacres que estes combinam". "Estes" são naturalmente os imigrantes... "Por que ele não os leva ao Vaticano?", grita um tal Luigi. Uma certa Giovanna vai direto ao ponto: "Eu esperava algumas palavras para aqueles que são mortos e estuprados por eles". São manifestações populares como estas que deixam os setores mais conservadores de dentro da Igreja muito satisfeitos.

Como diz o vaticanista Marco Politi, “o Papa Francisco irrita os conservadores obtusos, os prelados briguentos, os cínicos amantes do poder: por causa da limpeza que ele quer introduzir nos assuntos vaticanos, por causa da coerência que ele espera do clero, por causa das críticas aos bispos-príncipes, por causa da intenção de abolir a monarquia absoluta católica, fazendo com que os bispos participem no governo da Igreja. Uma reforma nada pequena da Cúria! E assim há meses – sob o olhar complacente de velhos grupos de poder de vestes violetas ou de cor púrpura – teve início o turbilhão de golpes baixos em sites e jornais”.

Mas há outra série de objeções (mais sutis) ao pontificado de Francisco: a dissociação entre o discurso e a ação, entre a teoria (teologia) e a prática. “Até agora, Francisco não fez nenhuma ação decisiva em uma certa direção, como fez o Papa João XXIII, que convocou os cardeais em apenas dois meses. Vamos descobrir ainda se Francisco não tomou atitudes por prudência ou falta de coragem. Ainda não consigo dizer qual é o norte que guia Francisco”, diz, por exemplo, o historiador Eduardo Hoornaert. Aqui vale o que diz a jornalista Barbara Spinelli: “Jesus não esculpe leis divinas sobre a pedra quando assiste ao processo da adúltera: urge frear um linchamento. Em um primeiro momento, ele se cala, se inclina para a terra e escreve na areia uma outra lei, que não se fixa, porque na areia o vento passa. O importante é que a sua palavra se encaminhe nas mentes, abrindo um vazio e fazendo silêncio ao redor. Dizem que não é teologia: na realidade, é teologia diferente”. Em outra passagem, diz ainda referindo-se à “encíclica” de Lampedusa, não escrita: “É como se o papa dissesse (mas estamos imaginando): "Eu não escrevo encíclicas, por enquanto. Ou, melhor, proponho uma totalmente nova: fazendo-me testemunha e pastor que não teoriza, mas age. Eu vou aonde as lágrimas são substância do mundo". A popularidade do Papa Francisco talvez se explique pelo fato de que o mundo, hoje, precisa menos de mestres do que de testemunhas.

Neste contexto ainda, uma possível chave de leitura é a de que este seja o primeiro Papa “pós-colonial”, na formulação dada pelo jornalista italiano Marco Filoni. Diz ele: “O papa falou de indiferença e de ternura. O primeiro é um tema gramsciano, a segunda é a mesma invocada por Ernesto Guevara de la Serna, conhecido como Che. Não, isso não é suficiente para fazer do papa um revolucionário. Ele não o é, não pode sê-lo – continua sendo sempre o sucessor de Pedro e senta-se no seu sólio. No entanto, a sua linguagem é simples e direta, que fala ao povo, às massas. (...) Ele não será revolucionário, mas Francisco parece ser o primeiro papa pós-colonial, ao menos na linguagem. E também partidário, se entendermos, com Gramsci, que quem toma partido não é indiferente”.

* A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

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