"Talvez vocês já saibam que
a principal causa de morte no Brasil são as doenças do aparelho circulatório.
Temos um alto índice de internações hospitalares sensíveis à atenção primária,
ou seja, que poderiam ter sido evitadas por um atendimento simples caso
houvesse médico no posto de saúde", escreve David Oliveira de Souza,
38 anos, médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês,
e ex-diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010), em artigo
publicado no jornal Folha de S. Paulo, 31-08-2013.
Segundo ele, "será bom
vê-los diagnosticar apenas com estetoscópio, aparelho de pressão e exames
básicos pais e mães de família hipertensos ou diabéticos e evitar, assim, que
deixem seus filhos precocemente por derrame ou por infarto".
Eis o artigo.
Bem-vindos, médicos cubanos.
Vocês serão muito importantes para o Brasil. A falta de médicos em áreas
remotas e periféricas tem deixado nossa população em situação difícil. Não se
preocupem com a hostilidade de parte de nossos colegas. Ela será amplamente
compensada pela acolhida calorosa nas comunidades das quais vocês vieram
cuidar.
A sua chegada responde a um
imperativo humanitário que não pode esperar. Em Sergipe, por exemplo, o menor
Estado do Brasil, é fácil se deslocar da capital para o interior. Ainda assim,
há centenas de postos de trabalho ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas
e em boas condições.
Caros colegas de Cuba, é correto
que nós médicos brasileiros lutemos por carreira de Estado, melhor estrutura de
trabalho e mais financiamento para a saúde. É compreensível que muitos optemos
por viver em grandes centros urbanos, e não em áreas rurais sem os mesmos
atrativos. É aceitável que parte de nós não deseje transitar nas periferias
inseguras e sem saneamento. O que não é justo é tentar impedir que vocês e
outros colegas brasileiros que podem e desejam cuidar dessas pessoas façam
isso. Essa postura nos diminui como corporação, causa vergonha e enfraquece
nossas bandeiras junto à sociedade.
Talvez vocês já saibam que a
principal causa de morte no Brasil são as doenças do aparelho circulatório.
Temos um alto índice de internações hospitalares sensíveis à atenção primária,
ou seja, que poderiam ter sido evitadas por um atendimento simples caso
houvesse médico no posto de saúde.
Será bom vê-los diagnosticar
apenas com estetoscópio, aparelho de pressão e exames básicos pais e mães de
família hipertensos ou diabéticos e evitar, assim, que deixem seus filhos
precocemente por derrame ou por infarto.
Será bom vê-los prevenindo a
sífilis congênita, causa de graves sequelas em tantos bebês brasileiros somente
porque suas mães não tiveram acesso a um médico que as tratasse com a secular
penicilina.
Será bom ver o alívio que mães
ribeirinhas ou das favelas sentirão ao vê-los prescrever antibiótico a seus
filhos após diagnosticar uma pneumonia. O mesmo vale para gastroenterites,
crises de asma e tantos diagnósticos para os quais bastam o médico e seu
estetoscópio.
Não se pode negar que vocês
também enfrentarão problemas. A chamada "atenção especializada de média
complexidade" é um grande gargalo na saúde pública brasileira. A depender
do local onde estejam, a dificuldade de se conseguir exame de imagem, cirurgias
eletivas e consultas com especialista para casos mais complicados será imensa.
Que isso não seja razão para desânimo. A presença de vocês criará demandas
antes inexistentes e os governos serão mais pressionados pelas populações.
Para os que ainda não falam o
português com perfeição, um consolo. Um médico paulistano ou carioca em certos
locais do Nordeste também terá problemas. Vai precisar aprender que quando
alguém diz que está com a testa "xuxando" tem, na verdade, uma dor de
cabeça que pulsa. Ou ainda que um peito "afulviando" nada mais é do
que asia. O útero é chamado de "dona do corpo". A dor em pontada é
uma dor "abiudando" (derivado de abelha).
Já atuei como médico estrangeiro
em diversos países e vi muitas vezes a expressão de alívio no rosto de pessoas
para as quais eu não sabia dizer sequer bom dia --situação muito diferente da
de vocês, já que nossos idiomas são similares.
O mais recente argumento contra
sua vinda ao nosso país é o fato de que estariam sendo explorados. Falou-se até
em trabalho escravo. A Organização Pan-americana de Saúde (Opas) com um
século de experiência, seria cúmplice, já que assinou termo de cooperação com o
governo brasileiro.
Seus rostos sorridentes nos
aeroportos negam com veemência essas hipóteses. Em nome de nosso povo e de boa
parte de nossos médicos, só me resta dizer com convicção: Um abraço fraterno e
muchas gracias.
David Oliveira de Souza, 38 anos, médico e professor do Instituto de Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, e ex-diretor médico do Médicos Sem Fronteiras no Brasil (2007-2010)
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