Luís González-Quevedo, sj
Introdução
A eleição
do jesuíta Jorge Mario Bergoglio como romano pontífice, em substituição do papa
Bento XVI, surpreendeu todo o mundo, a começar pelos próprios jesuítas. Morando
em uma capital do interior do Brasil, fui solicitado a dar um testemunho
pessoal sobre o papa Francisco.
Neste texto, proponho-me a inserir
na “linha do tempo” do novo papa, as lembranças que tenho do meu antigo amigo
Jorge Mario Bergoglio.
Jorge Mario Bergoglio nasceu em
Buenos Aires, no dia 17 de dezembro de 1936, no seio de uma família de
migrantes italianos. O pai, ferroviário, se chamava Mario José Bergoglio e a
mãe, dona de casa, Regina Maria Sivori. O casal teve mais dois filhos (Alberto
Horacio e Óscar Adrian) e duas filhas (Marta Regina e Maria Elena). Dos cinco irmãos, só vivem o mais velho (o atual papa) e a
caçula (Maria Elena, 64 anos). Jorge foi um jovem normal, que gostava de
futebol e de dançar tango. Estudou na escola pública e formou-se técnico
químico.
A
vocação religiosa do novo Papa foi marcada por uma forte experiência de Deus,
quando ele não tinha completado ainda os 17 anos. No dia 21 de setembro de
1953, festa de São Mateus, experimentou a presença amorosa de Deus em sua vida.
Depois, em uma confissão sacramental, sentiu a misericórdia de Deus e o chamado
à vida religiosa e sacerdotal. Primeiro, entrou em um Seminário diocesano, que
era dirigido por jesuítas. Depois, no dia 11 de março de 1958, ingressou na
Companhia de Jesus.
Bergoglio, jesuíta
Jorge Bergoglio seguiu a formação
tradicional na Companhia de Jesus: dois anos de Noviciado, em Córdoba; um ano
de Juniorado no Chile, para estudar Humanidades (latim, grego, literatura); três
anos de Filosofia (1961-1963) e quatro de Teologia (1967-1970), no Colégio
Máximo de San Miguel, na grande Buenos Aires. Entre Filosofia e Teologia,
Bergoglio fez três anos de Magistério, lecionando Literatura e Psicologia, nos
Colégios de Santa Fe e de El Salvador (Buenos Aires). No final do 3º ano de
Teologia, foi ordenado sacerdote, em 13 de dezembro de 1969. E, no dia 22 de
abril de 1973, fez os últimos votos na Companhia de Jesus.
Faço aqui uma pausa, para contar
como conheci o novo papa. No ano 1970, eu fui a San Miguel, para participar da
ordenação diaconal de alguns colegas. Lá encontrei um padre jovem, muito
atencioso. Chamava-se Jorge Bergoglio. Uma noite, começamos a platicar, ele chamando-me de “vós”, como fazem os argentinos com todo
o mundo, eu tratando-o de “tu”, como
é usual na Espanha.
A atenção que o jovem Padre
Bergoglio me dispensou e a coincidência de pontos de vista suscitou uma rápida
sintonia. Ambos éramos jovens, jesuítas, entusiastas dos Exercícios Espirituais
e da missão da Companhia de Jesus, procedíamos de famílias católicas
tradicionais; tínhamos tido problemas de saúde, resolvidos com cirurgias
mutiladoras (ele, do pulmão; eu, do estômago), etc. Ele me confidenciou que
seria nomeado Mestre de Noviços. Antes, precisava ir à Espanha, para fazer a
Terceira Provação (o final da formação de um jesuíta). Eu lhe dei o endereço de
minha família, da qual se tornaria amigo. O jovem Bergoglio tinha uma grande
capacidade de fazer amigos. Até hoje, dizem que o novo Papa é mestre na arte de
se aproximar das pessoas.[1]
Bergoglio fez a Terceira Provação
em Alcalá de Henares (Espanha) e regressou à Argentina, onde foi Mestre de
Noviços, professor de Teología e consultor da Província (1971-1973). Aos 36
anos, foi nomeado provincial da Província Argentina da Companhia de Jesus.
Nesse cargo, Bergoglio viveu e sofreu a chamada “guerra suja” da ditadura
militar argentina.
Na minha viagem a Argentina, em
1970, participei de uma missa presidida pelo Pe. Francisco Jalics, que era
orientador espiritual no Colégio Máximo. A missa aconteceu em uma “pequena
comunidade”, onde Jalics morava, junto com um grupo de jovens. O clima era
espontâneo, fraterno, sem muita preocupação com as formalidades litúrgicas. Lembro-me
de que o presidente da celebração (o próprio Jalics) não se revestiu de
paramentos, com exceção da estola.
Naquela época, a sociedade e a
Igreja na Argentina, como em outros países da América Latina, estavam muito
divididas. Em 1968, tinha acontecido a Conferência de Medellín, onde a Igreja
latino-americana assumiu a “opção preferencial pelos pobres”. Porém, a maneira
de entender e viver esta opção, por parte dos teólogos e dos bispos
latino-americanos teve bastantes variantes.[2]
A obra de Gustavo Gutierrez
“Teologia da Libertação. Perspectivas” (1972) teve muito sucesso, porque
respondia aos anseios das forças mais vivas da Igreja latino-americana. O
brutal assassinato de Dom Oscar Romero (1980), entre muitos outros, como o os
jesuítas da UCA (El Salvador, 1989), consagraria com o prestígio do martírio
esta corrente teológica e pastoral. A despeito de todas as controvérsias que
suscitou, a Teologia da Libertação é a contribuição mais original que a Igreja
latino-americana tem dado à reflexão sobre a fé cristã.
Bergoglio e a ditadura argentina
Nesse contexto, instaurou-se
na Argentina uma ditadura militar. Na época, o provincial Bergoglio me
confidenciou que alguns jovens estudantes jesuítas estavam envolvidos em
atividades consideradas “subversivas” pelo governo militar. O citado Pe.
Francisco Jalics, junto com outro padre jesuíta (Orlando
Yorio) residiam em um bairro pobre (Bajo Flores). Seu trabalho era pastoral, de
presença, apoio e testemunho de uma Igreja solidária com os mais pobres. O
provincial Bergoglio avisou-os do risco que estavam correndo. E seu temor veio a
confirmar-se. No dia 23 de maio de 1976, os dois padres foram sequestrados e levados
para a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), principal centro de tortura da
ditadura argentina.
Aqui
surgem duas versões. A primeira, favorável a Bergoglio, afirma que ele fez tudo
o que podia em favor dos companheiros sequestrados. Jovem ainda (não tinha
completado os 40 anos) e procedente de uma família modesta, carecia da
influência e do prestígio necessários para conseguir a libertação imediata dos
seus companheiros, naquele clima de poder arbitrário que existia no país. Ele chegou
a conversar com o general Videla, o ditador a quem se lhe imputam as mortes de
30.000 argentinos.
Só depois
de 5 meses, Orlando Yorio e Francisco Jalics foram libertados e deportados do
país. Consta que o provincial Bergoglio ajudou a sair da Argentina outras
pessoas perseguidas. A um indivíduo que tinha certa semelhança com ele,
deu-lhe documentos pessoais, para que pudesse passar a fronteira. Até hoje,
porém, uma segunda versão dos fatos, acusa Bergoglio de ter colaborado com a
ditadura argentina. Esta acusação, nascida no clima emocional de uma época de
terror, perseguirá o atual papa até o fim dos seus
dias. Assim como Bento XVI foi acusado de ter convivido com o regime nazista,
para alguns, Francisco será sempre culpado de ter convivido com a ditadura
argentina.[3]
A
segunda versão, que responsabiliza Bergoglio pelo sequestro dos dois jesuítas, suspeita
que ele teria fornecido aos militares informações sobre as atividades dos seus companheiros,
ou bem lhes teria negado o apoio da Igreja e da Companhia. Esta versão foi
recolhida e divulgada pela esquerda argentina, de tendência anticlerical, por
exemplo nos livros do ativista Emilio Mignone,[4]
ou do jornalista Horácio Verbistky.[5]
Na opinião de uma irmã do Pe. Orlando Yorio, hoje
falecido, Bergoglio teria sido o “autor intelectual” do sequestro. O Pe.
Jalics, atualmente na Europa, tem feito uma declaração contrária a essa versão.
Outras pessoas insuspeitas, como o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez
Esquivel ou a ex-juíza e militante de direitos humanos Alice Oliveira, eximem
Bergoglio de qualquer suspeita de colaboração com a ditadura.
Pessoalmente,
não tenho dúvida quanto à inocência do atual papa nesta insidiosa acusação.
Conhecendo um pouco o temperamento de Bergoglio, sim acredito que ele não
gostasse da atitude excessivamente politizada de alguns dos seus subordinados.
Mas que ele desse qualquer tipo de apoio à ditadura militar, abandonando ou
entregando aos militares os seus próprios companheiros, parece-me uma infâmia inacreditável.
Resta apenas o fato de
Bergoglio não ter denunciado, publicamente, os crimes do governo
militar. É a mesma queixa que os judeus têm contra Pio XII. Mas podemos
facilmente imaginar o que teria acontecido se o papa Pacelli ou o provincial
Bergoglio tivessem agido de outra maneira. Segundo o Pe. Frederico Lombardi,
porta voz do Vaticano, quando Bergoglio assumiu o Arcebispado de Buenos Aires,
“pediu perdão, em nome da Igreja, por não ter feito o bastante, durante o
período da ditadura”. Por sua vez, Pérez Esquivel disse que “houve bispos que
foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não”.[6]
Um dos poucos bispos argentinos que
enfrentou publicamente o regime militar, Dom
Miguel Hesayne, elogia
Francisco: "Sempre foi generoso e corajoso". Também nega qualquer
ligação de Bergoglio com a ditadura e sua suposta colaboração no sequestro dos
dois padres jesuítas: "Alguém que queria ter uma entrevista com Bergoglio, no dia
em que foram capturados, o encontrou chorando. 'Me sequestraram Yorio e Jalics’, dizia”.[7]
Durante
seu mandato de Provincial, a Província Argentina vendeu o Observatório
astronômico de San Miguel (1977), adquirido pela Força Aérea Argentina. Longe
de ser um apoio ao regime ditatorial, foi uma transação que garantiu a
continuidade de um serviço científico, que a Companhia de Jesus não podia
sustentar, por falta de recursos humanos e financeiros.
Atuação de Bergoglio na Província Argentina
Durante seu mandato de provincial
(1973-1979), Bergoglio teve que tomar decisões importantes, tanto na área
administrativa como no campo pastoral. Transferiu a Cúria da Província
Argentina para San Miguel, no mesmo edifício das Faculdades de Filosofia e Teologia.
Dedicou jesuítas à animação vocacional, conseguindo um notável aumento das
entradas no Noviciado, concentrou e acompanhou de
perto a formação dos jesuítas argentinos, resolveu a dívida da
Universidade de El Salvador, traspassando-a para um grupo de leigos, fortaleceu
a presença dos jesuítas na Universidade Católica de Córdoba e nas Faculdades de
Filosofia e Teologia de San Miguel; intensificou o
compromisso da Companhia com os mais necessitados, apoiou a presença de
jesuítas em paróquias e capelas da grande Buenos Aires; formou um grupo de
jesuítas dedicado ao trabalho paroquial em regiões carentes do interior da
Argentina, valorizando a religiosidade popular.
Como provincial, Bergoglio
participou da Congregação Geral 32ª da Companhia de Jesus (1974-1975). Ele foi
um dos membros mais jovens desta Congregação, que marcou decisivamente a missão
atual da Companhia, definindo-a como “o serviço da fé e a promoção da justiça”
(decreto 4º). Posteriormente, nos anos 1980, foi eleito para participar da
Congregação Geral 33ª e da Congregação de Procuradores de 1987.
Concluído seu mandato de
provincial, Bergoglio foi Reitor do Colégio Máximo de
San Miguel (1979-1985), professor de Teologia, primeiro pároco da paróquia do
Patriarca São José e assessor nacional da CVX (Comunidade de Vida Cristã). No
seu reitorado, incentivou o estudo da literatura e da história, como preparação
para os estudos filosóficos e teológicos e construiu uma nova biblioteca. Ainda
favoreceu a instalação no Colégio Máximo de um Centro de Formação Profissional,
em San Miguel, e de um Colégio de Ensino Secundário para adultos da região.
Desenvolveu, enfim, uma importante tarefa evangelizadora e educacional, com a
participação dos jesuítas em formação.
Uma
lembrança pessoal ilustrará a disponibilidade deste homem tão cheio de
ocupações. Em 1985, sendo eu Mestre de Noviços, tive que participar de uma
reunião em Montevideo. Avisei Bergoglio que faria escala em Buenos Aires, mas
sem poder sair do aeroporto. Ele foi ao aeroporto e conseguiu entrar na sala de
passageiros em trânsito, para me cumprimentar.
Terminado
seu mandato de Reitor em San Miguel, passou seis meses na Alemanha, para
redigir sua tese de Doutorado em Teologia. A tese tratava de Romano Guardini, cujos
escritos Bergoglio considerava muito úteis para a formação dos jovens.
Nos anos 1986-1989, Bergoglio residia na comunidade da
igreja de El Salvador, no centro de Buenos Aires, fazia parte da redação do Boletín de Espiritualidad da Província
argentina e ensinava Teologia
Pastoral no Colégio Máximo.
Em 1990, Bergoglio foi
destinado a Córdoba, como diretor espiritual e confessor na Igreja da Companhia
de Jesus. Córdoba é a cidade argentina com
mais vida universitária, depois de Buenos Aires. Mas, depois de ter exercido
cargos de maior responsabilidade, a transferência a Córdoba significou para ele
certa marginalização na Província Argentina. No entanto, Bergoglio tinha prestígio
entre o clero diocesano e uma parte da Província, que se tinha formado com ele.
Naquela época, era voz comum na Companhia que a Província
Argentina estava dividida. Tanto é assim que, o governo geral da Companhia
nomeou superior provincial da Argentina um padre colombiano: Álvaro Restrepo.
Em recente entrevista, este disse: “Quando cheguei à Argentina, eu pensei que iria encontrar uma divisão entre ‘conservadores’
e ‘progressistas’. Mas descobri que era um problema de lideranças. Uns seguiam
a formação de Jorge Mario (Bergoglio) e outros eram mais novos,
uma geração diferente”.[8]
Dez anos depois de sofrer essas tensões internas na
Companhia de Jesus, Bergoglio seria a figura mais destacada da Igreja na
Argentina..
O bispo Bergoglio
A
mudança veio pela mão do cardeal Antonio Quarracino, arcebispo de Buenos Aires,
que em 1992, indicou Bergoglio para ser seu bispo auxiliar. “É um jesuíta
sereno e preciso. Ele tem uma capacidade e uma velocidade mental fora do comum”,
teria dito o cardeal.[9]
E Bergoglio não o decepcionou. Ordenado bispo, no dia 27 de junho de 1992,
cinco anos depois, seria o sucessor do Arcebispo Quarracino.
Nesse mesmo ano de
1992, em outubro, encontrei-me com Bergoglio pela última vez. Por ocasião de outra reunião de
Mestres de Noviços, em Buenos Aires, visitei-o em uma Casa do Clero, onde
morava. Recebeu-me com a cordialidade de sempre. Convidou-me a almoçar e
conversamos bastante. Contou-me que, em outras
ocasiões, já tinham tentado nomeá-lo bispo e ele não aceitara. “Mas, deste vez,
o pedido veio muito forte e não tive como recusá-lo”. Disse-me isso quase
desculpando-se, pois é sabido que os jesuítas prometemos não aceitar o
episcopado, a não ser por obediência ao Papa. Quanto à sua situação anterior na
Companhia, Bergoglio não me disse uma só palavra de queixa. Ele era uma
pessoa humilde, que encarava a realidade da vida e a diversidade das pessoas do
jeito que são.
Nunca mais encontrei o atual
Papa. Lembro-me de lhe ter enviado meu livrinho Experiência de Deus: presença e saudade (2000). Ele me havia enviado, antes, seus três primeiros livros Meditaciones para religiosos (1982), Reflexiones
sobre la vida apostólica (1986) e Reflexiones en esperanza (1992). Neste último, escreveu-me uma
afetuosa dedicatória. Deixei os três livros na
biblioteca Armando Cardoso, de Itaici. Como poderia eu imaginar que seu autor
seria feito Papa?
Em 1997, Bergoglio foi nomeado Arcebispo de
Buenos Aires. As pessoas que tiveram contato com ele, nesta época, dizem que
era conhecido pela sua austeridade e simplicidade de vida. Em lugar de morar no
palácio episcopal, vivia sozinho em um pequeno apartamento, no segundo andar da
Curia do Arcebispado, e preparava sua
própria comida. “O meu povo é pobre – dizia - e eu sou um deles”.
Uma religiosa argentina
testemunha: “Nunca o vi com guarda-costas
pessoal, nem com motoristas. Em geral, se deslocava por meio do transporte
público”. Foi, sobretudo, um “pastor” que colocou a arquidiocese em
estado de “missão”. Ele exortava os fiéis a não permanecerem fechados nas
sacristias, mas a saírem ao encontro dos mais necessitados, tanto material como
espiritualmente.
Os padres mais novos tinham sincero
afeto pelo seu Arcebispo. Bergoglio lhes recomendava serem misericordiosos,
corajosos e terem as portas abertas para o povo. A pior coisa que pode
acontecer à Igreja, dizia, é o que de Lubac chama “mundanidade espiritual”, que
significa “colocar no centro o próprio eu”.[10] Sensível aos problemas
sociais, o Arcebispo Bergoglio apoiava os chamados padres “villeros” (sacerdotes
que trabalham nas “Villas Miseria”,
as favelas da Argentina).
Recém nomeado papa, Francisco disse:
“O bom sacerdote reconhece-se quando o povo é ungido com óleo de alegria,
quando sai da missa com o rosto de quem recebeu uma boa notícia (...), quando o
Evangelho que pregamos chega ao seu dia a dia, quando ilumina as situações
extremas. O óleo precioso, que unge a cabeça
de Aarão, não se limita a perfumá-lo a ele, mas espalha-se e atinge ‘as
periferias’”. O Papa Bergoglio chama de “periferias existenciais” as situações limite, na fronteira do humano, onde vivem os
pobres, os presos, os doentes, os abandonados.
Bergoglio
mostrou sempre uma grande sintonia com a piedade popular latino-americana.
Lembro-me de que na correspondência ocasional que me enviava (felicitações de
Natal e coisas semelhantes), sempre enviava junto alguma imagem de Nossa
Senhora, de São José, etc. No seu brasão episcopal, agora mantido como brasão
pontifício, figuram três símbolos: o IHS, característico da Companhia de Jesus,
uma estrela, representativa de Nossa Senhora, e uma flor de nardo, simbolizando
a devoção a São José.
O lema
que acompanha o brasão do novo papa merece uma explicação. Miserando atque eligendo significa "tendo compaixão dele, escolheu-o". A frase esta tirada de São Beda, o Venerável, que foi um
Padre da Igreja do século VIII. Na sua homilia 21, este santo Padre comenta a
vocação de São Mateus (Mt 9,9) com estas palavras: “Jesus viu o publicano e,
porque dele se compadeceu e o escolheu [miserando
atque eligendo], dize-lhe: ‘Segue-me’”.[11] Para
entender a razão pela qual Bergoglio escolheu este lema, devemos lembrar que
foi numa festa de São Mateus, em que se lê o texto Mt 9,9-13, que o jovem Jorge
Mário teve uma forte experiência da presença de Deus em sua vida. Ao ser
chamado ao episcopado, Bergoglio escolheu a frase de São Beda, para expressar
que Jesus o elegeu por pura misericórdia.
No consistório do dia 21 de fevereiro de
2001, João Paulo II o fez cardeal, com o título de São Roberto Bellarmino. Como Cardeal Primaz da Igreja Argentina, conservou seus
hábitos modestos e afáveis. Em certa ocasião, foi a Madri para pregar um
Retiro aos bispos espanhois. Meu irmão, Calixto, convidou-o a jantar em sua
casa. O cardeal Bergoglio aceitou, dando mais uma prova de amizade e
simplicidade.
No mês de outubro de 2001, o cardeal
Bergoglio foi nomeado relator geral adjunto, na X Assembléia Geral Ordinária do
Sínodo dos Bispos, dedicada ao ministério episcopal. O principal relator,
cardeal Egan, arcebispo de Nova York, teve que regressar aos Estados Unidos,
devido aos atentados terroristas do 11 de setembro daquele ano. O cardeal
Bergoglio assumiu o trabalho, tornando-se mais conhecido internacionalmente.
No ano
2002, Bergoglio recusou o cargo de presidente da Conferência episcopal
argentina, mas três anos depois, novamente eleito, assumiu. Em 2005, participou
do conclave que elegeu Bento XVI, sendo o segundo mais votado, segundo vazou
para a imprensa. O jornalista Marco Tosatti descobriu, graças a uma fonte de
total solvência, que Bergoglio pediu aos que votavam nele, quase com lágrimas,
que se abstivessem de elegê-lo.[12] Na primeira votação, Ratzinger teria tido 47
votos, Bergoglio, 10 e Martini, 9. Na segunda, Ratzinger, 65 e Bergoglio, 35. Na
terceira, após o pedido de Bergoglio, Ratzinger obteve 84 votos (mais dos dois
terços necessários para eleger-se), enquanto 26 votos ainda foram para Bergoglio.
Em maio
de 2007, participou da 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e
Caribenho, na qual foi o coordenador da equipe de redação do documento final. O
Papa Francisco já manifestou seu desejo de visitar Aparecida, depois da Jornada
Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro.
Reeleito
presidente da Conferência episcopal, em 2008, o cardeal Bergoglio, enfrentou-se
repetidamente com o governo de Néstor Kirchner e com o de sua esposa e
sucessora Cristina Kirchner. O ápice de tais enfrentamentos aconteceu por
ocasião do projeto de lei que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo
em julho de 2010.
Uma eleição surpreendente
Ainda é
cedo para sabermos, com certeza, o que aconteceu no último conclave. Sabemos
apenas que o cardeal Bergoglio foi eleito no quinto escrutínio. O cardeal
Angelo Comastri, arcipreste da basílica de São Pedro, contou – com licença do
Papa Francisco – que, quando este foi eleito e devia dizer se aceitava, disse:
“Sou um grande pecador. Confiando na misericórdia e na paciência de Deus, no
sofrimento, eu aceito”.
A
eleição do cardeal Bergoglio foi uma surpresa. Seu nome não estava nas
listas dos favoritos. Trata-se do primeiro Papa latino-americano. E de um
jesuíta, contradizendo a tradição inaciana. As primeiras reações, porém, estão
sendo muito positivas. A impressão geral é que a eleição do Papa Francisco foi
“uma boa surpresa”. A imprensa internacional está lhe
dedicando uma atenção extraordinária neste começo do seu pontificado. Ele, que
tinha fama de tímido e esquivo, avesso a entrevistas, tornou-se, de um dia para
o outro, uma autêntica “estrela midiática”.[13]
Os primeiros gestos do novo Papa cativaram
muitos, tanto crentes como agnósticos. Na sua primeira aparição na sacada da
basílica de São Pedro, mostrou-se tranquilo, simples e próximo das pessoas.
Vestia apenas a batina e a esclavina brancas, sem a mozeta vermelha tradicional
nos Papas. Em lugar de uma cruz de ouro, usava a mesma cruz de ferro do seu
tempo de bispo. Para deslocar-se, dispensou a limusine exclusiva do pontífice,
e usou o mesmo ônibus dos demais cardeais. Passou pela Casa do Clero onde se
hospedou em Roma e fez questão de pagar sua conta. Dispensou, também, ao menos
“por enquanto”, o espaçoso apartamento pontifício no Palácio Apostólico,
preferindo continuar morando na Casa Santa Marta, onde se hospedaram os
cardeais durante o conclave. Enfim, nas suas aparições públicas na Praça de São
Pedro, substituiu o “papa-movel” fechado por um jipe aberto, que o aproxima
mais do povo.
Todos
esses sinais reforçam a impressão de que com o Papa Bergoglio abre-se um novo
capitulo na história do governo da Igreja. Esta impressão foi reforçada pela
escolha do seu nome. O nome “Francisco” evoca claramente seu espírito
evangélico de proximidade aos pobres, sua identificação com o povo simples e
seu compromisso com a renovação da Igreja.[14]
O próprio Papa Francisco explicou aos
jornalistas as circunstâncias de sua escolha:
“Na eleição, tinha ao meu lado o Cardeal
Cláudio Hummes, um grande amigo! Quando o caso começava a tornar-se ‘perigoso’,
ele animava-me. E, quando os votos atingiram dois terços, surgiu o habitual
aplauso. Ele abraçou-me, beijou-me e disse-me: ‘Não te esqueças dos pobres!’ E
aquela palavra gravou-se-me aqui [apontando a cabeça]: os pobres, os pobres”.
“Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis. Em
seguida pensei nas guerras, enquanto continuava o escrutínio até contar todos
os votos. Francisco é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu coração:
Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que
ama e preserva a criação; é o homem que nos dá este espírito de paz, o homem
pobre... Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!” [15]
Um sociólogo prevê que o novo Papa introduzirá no governo
da Igreja uma nova linguagem: "Este
papa tem um estilo inédito. Batizou um novo sistema de comunicação que mudará a
linguagem da Igreja".[16]
Já o teólogo Susin observa que, na primeira fala de Francisco ao povo, sua
despedida foi semelhante a algumas falas de João XXIII. O Papa Francisco, despediu-se do povo, dizendo simplesmente:
“Nós nos veremos em breve, rezem por mim e tenham uma boa noite!”.[17]
Foi notado, também, que o Papa Francisco apresentou-se
espontaneamente ao povo romano como o bispo de Roma. Após rezar pelo seu antecessor, Bento XVI, Francisco
disse: “E agora
iniciamos este caminho, bispo e povo... este caminho da Igreja de Roma, que é
aquela que preside a todas as Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade,
de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros”.
Os teólogos comentaram que, do ponto de vista da
legitimidade do encargo pontifício, este é o caminho certo: antes de ser Papa, Francisco
é o Bispo de Roma, e, por isso, é o primeiro entre os demais Bispos (primus inter pares). Isso revela um
forte acento na “colegialidade episcopal”, o que é um clamor de muitas vozes na
Igreja, depois do concílio Vaticano II. Tal visão facilita também o diálogo
ecumênico com as demais igrejas cristãs.[18]
Conclusão: Que podemos esperar do novo
papa?
Não
sou um desses vaticanistas, que aliás erraram nas suas previsões para o último
conclave. Mas creio que as primeiras semanas do pontificado do papa Francisco
nos permitem prever que, com ele, o governo universal da Igreja será mais
simples e misericordioso, mais descentralizado e mais próximo dos problemas
reais das pessoas.
Assim
como os papas anteriores manifestaram um sincero desejo de manter boas relações
com as diversas igrejas cristãs, com as outras religiões e com os não crentes,
Francisco expressou também seu desejo de manter e intensificar esse diálogo com
todas as pessoas de boa vontade.
Pelo que diz respeito às
comunidades católicas, creio que o que se espera é um governo da Igreja mais
pastoral. A primeira nomeação do Santo Padre Francisco parece apontar nesse
sentido. Francisco escolheu para ser seu sucessor no Arcebispado de Buenos
Aires o bispo de Santa Rosa, Mario Aurelio Poli, que tem fama de ser um homem
austero, humilde e apaixonado por Cristo. Esta nomeação parece indicar que o
novo papa deseja bispos-pastores, que sintonizem com o povo e que sejam homens
espirituais e não apenas meros gestores.[19]
Se
tivesse que descrever o Bergoglio que eu conheci, há quarenta anos, eu diria que
ele era um homem de fé, um religioso fiel aos seus votos, um padre desejoso de
ajudar as pessoas a se relacionar com Deus . Na única carta que conservo do
então padre Bergoglio, datada do dia 3 de janeiro de 1984, ele prometia rezar
por mim, que estava assumindo, aquele ano, o cargo de Mestre de Noviços, e me
pedia que não o esquecesse nas minhas orações.
No dia de sua eleição como bispo de Roma e Papa, “princípio
e fundamento” da unidade da Igreja Católica, Francisco inclinou-se
profundamente, diante da multidão, pedindo que rezassem por ele, em um momento
de silêncio, antes de ele abençoar o povo. De Bergoglio a Francisco parece
haver, pois, uma continuidade nesse traço característico das pessoas
espirituais: a sincera confiança na oração.
Termino, recolhendo o que os jesuítas podemos prever a
respeito do pontificado do nosso irmão Francisco. Por ser jesuíta e por toda
sua trajetória histórica, cremos que ele deverá enfatizar a espiritualidade, a
oração encarnada na vida. Em segundo lugar, a pobreza, a misericórdia diante de
todas as formas de sofrimento humano. Por último, diante de todas as
dificuldades e condicionamentos do governo geral da Igreja, esperamos que Francisco
mostre uma virtude que era sumamente apreciada por Santo Inácio de Loyola: a
liberdade de espírito.
Rezemos, desde já, por este nosso irmão e pai na fé,
Francisco, para que as esperanças que ele tem suscitado no início do seu
pontificado, venham a se realizar AMDG.[20]
Goiânia, 3 de abril de 2013.
Luís
González-Quevedo, sj
[1]
Testemunho de Antonio Spadaro, sj. diretor da Civiltá Cattolica, no
lançamento do livro do Papa: Umiltà. La strada verso Dio (Editora EMI), que reúne discursos e homilias do cardeal
Bergoglio, durante o seu ministério como arcebispo de Buenos Aires.
[2] Em 1970, no Congresso Eucarístico Nacional,
celebrado em Brasília, um arcebispo me disse que Dom Helder Câmara só mostrava
a miséria. “Eu prefiro mostrar outras coisas...”. Hoje, os dois são falecidos.
Dom Helder continua sendo uma figura inspiradora. O outro prelado foi
esquecido.
[3] Por ter
nascido, crescido e convivido com a ditadura franquista, na Espanha, tenho
experiência da força de tais acusações.
[4] Emilio
Mignone, Iglesia y Dictadura. El papel de la Iglesia a la luz
de sus relaciones con el régimen militar. Ediciones del Pensamiento Nacional,
4ª ed. 1987.
[5] Horácio
Verbistky, El silêncio: de Paulo VI a
Bergoglio. Las relaciones secretas de la Iglesia con la ESMA. Bs.As.:
Sudamericana, 2005. Segundo a revista Veja, este autor trabalhava, ao mesmo
tempo, para os esquerdistas e para os militares (“Ele lavou as mãos?”, Veja, 20 de março de 2013, p. 81).
[6]
“Opiniones, Documentos y Homilías de Monseñor
Jorge Bergoglio”,
in:estudiosnacionales.blogspot.com.br/2013/03 (acessado em 02 abril 2013).
[7] Reportagem de Alejandro Rebossio,
publicada pelo jornal El Pais, e reproduzida pelo portal Uol,
22-03-2013 e pelo IHU on-line da mesma data.
[9] Ariel
Palacios e Marcelo Godoy, “O jesuíta leitor de Dostoievski”, O Estado de São Paulo, 14 de março de
2013.
[10] L'Osservatore Romano, Anno LXIII, numero 12, reproduzido em www.vatican.va
(acessado em 24.03.2013).
[11] "Vidit ergo lesus publicanum et
quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere me". “Viu
o publicano, dele se compadeceu e o escolheu”, traduz a edição brasileira da Liturgia
das Horas, IV, 1299-1300.
[12] Rubén Amón, “Qué pasó en el Cónclave de 2005?”, El Mundo,11 de marzo de 2013.
Curiosamente, o autor descartava a possibilidade do cardeal Bergoglio ser
eleito no Conclave deste ano, por ter já 76 anos;
[13] Maria Sainz, “Una modestia muy midiática”, El Mundo, Madrid, 29 de marzo de 2013.
[14] Adolfo
Nicolás, superior geral da Companhia de Jesus, Carta a toda a Companhia,
2013/04, 14 de março de 2013.
[15] “Encontro
com os representantes dos meios de comunicação” (16 de março de 2013). Em:www.vatican.va, acessado em 24.03.2013. “Francisco
não é um nome - comenta Leonardo Boff -. É um projeto de Igreja, pobre,
simples, evangélica e destituída de todo o poder (...). É uma Igreja ecológica
que chama a todos os seres com a doce palavra de ‘irmãos e irmãs’”.[16] 'Francisco irá mudar a linguagem da
Igreja''. Entrevista com Franco Ferrarotti, IHU on-line, 20 de março de 2013.
[17] Fratelli e sorelle, vi lascio. Grazie tante
dell’accoglienza. Pregate per me e a presto! Ci vediamo presto: domani voglio
andare a pregare la Madonna, perché custodisca tutta Roma. Buona notte e buon
riposo! (“Primo saluto del Santo Padre Francesco”, 13 marzo 2013, www.vatican.va, acessado em 26.03.2013).
[19]
J.M;Vidal, “Nombramientos al estilo Francisco”, El Mundo, 31 de marzo de 2013.
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