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quarta-feira, 17 de abril de 2013

DE BERGOGLIO A FRANCISCO. Um testemunho



  Luís González-Quevedo, sj
Introdução


            A eleição do jesuíta Jorge Mario Bergoglio como romano pontífice, em substituição do papa Bento XVI, surpreendeu todo o mundo, a começar pelos próprios jesuítas. Morando em uma capital do interior do Brasil, fui solicitado a dar um testemunho pessoal sobre o papa Francisco.

            Neste texto, proponho-me a inserir na “linha do tempo” do novo papa, as lembranças que tenho do meu antigo amigo Jorge Mario Bergoglio. 


Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires, no dia 17 de dezembro de 1936, no seio de uma família de migrantes italianos. O pai, ferroviário, se chamava Mario José Bergoglio e a mãe, dona de casa, Regina Maria Sivori. O casal teve mais dois filhos (Alberto Horacio e Óscar Adrian) e duas filhas (Marta Regina e Maria Elena). Dos cinco irmãos, só vivem o mais velho (o atual papa) e a caçula (Maria Elena, 64 anos). Jorge foi um jovem normal, que gostava de futebol e de dançar tango. Estudou na escola pública e formou-se técnico químico.


A vocação religiosa do novo Papa foi marcada por uma forte experiência de Deus, quando ele não tinha completado ainda os 17 anos. No dia 21 de setembro de 1953, festa de São Mateus, experimentou a presença amorosa de Deus em sua vida. Depois, em uma confissão sacramental, sentiu a misericórdia de Deus e o chamado à vida religiosa e sacerdotal. Primeiro, entrou em um Seminário diocesano, que era dirigido por jesuítas. Depois, no dia 11 de março de 1958, ingressou na Companhia de Jesus. 

Bergoglio, jesuíta


Jorge Bergoglio seguiu a formação tradicional na Companhia de Jesus: dois anos de Noviciado, em Córdoba; um ano de Juniorado no Chile, para estudar Humanidades (latim, grego, literatura); três anos de Filosofia (1961-1963) e quatro de Teologia (1967-1970), no Colégio Máximo de San Miguel, na grande Buenos Aires. Entre Filosofia e Teologia, Bergoglio fez três anos de Magistério, lecionando Literatura e Psicologia, nos Colégios de Santa Fe e de El Salvador (Buenos Aires). No final do 3º ano de Teologia, foi ordenado sacerdote, em 13 de dezembro de 1969. E, no dia 22 de abril de 1973, fez os últimos votos na Companhia de Jesus.


Faço aqui uma pausa, para contar como conheci o novo papa. No ano 1970, eu fui a San Miguel, para participar da ordenação diaconal de alguns colegas. Lá encontrei um padre jovem, muito atencioso. Chamava-se Jorge Bergoglio. Uma noite, começamos a platicar, ele chamando-me de “vós”, como fazem os argentinos com todo o mundo, eu tratando-o de “tu”, como é usual na Espanha.


A atenção que o jovem Padre Bergoglio me dispensou e a coincidência de pontos de vista suscitou uma rápida sintonia. Ambos éramos jovens, jesuítas, entusiastas dos Exercícios Espirituais e da missão da Companhia de Jesus, procedíamos de famílias católicas tradicionais; tínhamos tido problemas de saúde, resolvidos com cirurgias mutiladoras (ele, do pulmão; eu, do estômago), etc. Ele me confidenciou que seria nomeado Mestre de Noviços. Antes, precisava ir à Espanha, para fazer a Terceira Provação (o final da formação de um jesuíta). Eu lhe dei o endereço de minha família, da qual se tornaria amigo. O jovem Bergoglio tinha uma grande capacidade de fazer amigos. Até hoje, dizem que o novo Papa é mestre na arte de se aproximar das pessoas.[1]

Bergoglio fez a Terceira Provação em Alcalá de Henares (Espanha) e regressou à Argentina, onde foi Mestre de Noviços, professor de Teología e consultor da Província (1971-1973). Aos 36 anos, foi nomeado provincial da Província Argentina da Companhia de Jesus. Nesse cargo, Bergoglio viveu e sofreu a chamada “guerra suja” da ditadura militar argentina. 


Na minha viagem a Argentina, em 1970, participei de uma missa presidida pelo Pe. Francisco Jalics, que era orientador espiritual no Colégio Máximo. A missa aconteceu em uma “pequena comunidade”, onde Jalics morava, junto com um grupo de jovens. O clima era espontâneo, fraterno, sem muita preocupação com as formalidades litúrgicas. Lembro-me de que o presidente da celebração (o próprio Jalics) não se revestiu de paramentos, com exceção da estola.


Naquela época, a sociedade e a Igreja na Argentina, como em outros países da América Latina, estavam muito divididas. Em 1968, tinha acontecido a Conferência de Medellín, onde a Igreja latino-americana assumiu a “opção preferencial pelos pobres”. Porém, a maneira de entender e viver esta opção, por parte dos teólogos e dos bispos latino-americanos teve bastantes variantes.[2]

A obra de Gustavo Gutierrez “Teologia da Libertação. Perspectivas” (1972) teve muito sucesso, porque respondia aos anseios das forças mais vivas da Igreja latino-americana. O brutal assassinato de Dom Oscar Romero (1980), entre muitos outros, como o os jesuítas da UCA (El Salvador, 1989), consagraria com o prestígio do martírio esta corrente teológica e pastoral. A despeito de todas as controvérsias que suscitou, a Teologia da Libertação é a contribuição mais original que a Igreja latino-americana tem dado à reflexão sobre a fé cristã.

Bergoglio e a ditadura argentina

            Nesse contexto, instaurou-se na Argentina uma ditadura militar. Na época, o provincial Bergoglio me confidenciou que alguns jovens estudantes jesuítas estavam envolvidos em atividades consideradas “subversivas” pelo governo militar. O citado Pe. Francisco Jalics, junto com outro padre jesuíta (Orlando Yorio) residiam em um bairro pobre (Bajo Flores). Seu trabalho era pastoral, de presença, apoio e testemunho de uma Igreja solidária com os mais pobres. O provincial Bergoglio avisou-os do risco que estavam correndo. E seu temor veio a confirmar-se. No dia 23 de maio de 1976, os dois padres foram sequestrados e levados para a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), principal centro de tortura da ditadura argentina.


Aqui surgem duas versões. A primeira, favorável a Bergoglio, afirma que ele fez tudo o que podia em favor dos companheiros sequestrados. Jovem ainda (não tinha completado os 40 anos) e procedente de uma família modesta, carecia da influência e do prestígio necessários para conseguir a libertação imediata dos seus companheiros, naquele clima de poder arbitrário que existia no país. Ele chegou a conversar com o general Videla, o ditador a quem se lhe imputam as mortes de 30.000 argentinos.

Só depois de 5 meses, Orlando Yorio e Francisco Jalics foram libertados e deportados do país. Consta que o provincial Bergoglio ajudou a sair da Argentina outras pessoas perseguidas. A um indivíduo que tinha certa semelhança com ele, deu-lhe documentos pessoais, para que pudesse passar a fronteira. Até hoje, porém, uma segunda versão dos fatos, acusa Bergoglio de ter colaborado com a ditadura argentina. Esta acusação, nascida no clima emocional de uma época de terror, perseguirá o atual papa até o fim dos seus dias. Assim como Bento XVI foi acusado de ter convivido com o regime nazista, para alguns, Francisco será sempre culpado de ter convivido com a ditadura argentina.[3]


A segunda versão, que responsabiliza Bergoglio pelo sequestro dos dois jesuítas, suspeita que ele teria fornecido aos militares informações sobre as atividades dos seus companheiros, ou bem lhes teria negado o apoio da Igreja e da Companhia. Esta versão foi recolhida e divulgada pela esquerda argentina, de tendência anticlerical, por exemplo nos livros do ativista Emilio Mignone,[4] ou do jornalista Horácio Verbistky.[5] Na opinião de uma irmã do Pe. Orlando Yorio, hoje falecido, Bergoglio teria sido o “autor intelectual” do sequestro. O Pe. Jalics, atualmente na Europa, tem feito uma declaração contrária a essa versão. Outras pessoas insuspeitas, como o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel ou a ex-juíza e militante de direitos humanos Alice Oliveira, eximem Bergoglio de qualquer suspeita de colaboração com a ditadura.


Pessoalmente, não tenho dúvida quanto à inocência do atual papa nesta insidiosa acusação. Conhecendo um pouco o temperamento de Bergoglio, sim acredito que ele não gostasse da atitude excessivamente politizada de alguns dos seus subordinados. Mas que ele desse qualquer tipo de apoio à ditadura militar, abandonando ou entregando aos militares os seus próprios companheiros, parece-me uma infâmia inacreditável.

            Resta apenas o fato de Bergoglio não ter denunciado, publicamente, os crimes do governo militar. É a mesma queixa que os judeus têm contra Pio XII. Mas podemos facilmente imaginar o que teria acontecido se o papa Pacelli ou o provincial Bergoglio tivessem agido de outra maneira. Segundo o Pe. Frederico Lombardi, porta voz do Vaticano, quando Bergoglio assumiu o Arcebispado de Buenos Aires, “pediu perdão, em nome da Igreja, por não ter feito o bastante, durante o período da ditadura”. Por sua vez, Pérez Esquivel disse que “houve bispos que foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não”.[6]


            Um dos poucos bispos argentinos que enfrentou publicamente o regime militar, Dom Miguel Hesayne, elogia Francisco: "Sempre foi generoso e corajoso". Também nega qualquer ligação de Bergoglio com a ditadura e sua suposta colaboração no sequestro dos dois padres jesuítas: "Alguém que queria ter uma entrevista com Bergoglio, no dia em que foram capturados, o encontrou chorando. 'Me sequestraram Yorio e Jalics’, dizia”.[7]


            Durante seu mandato de Provincial, a Província Argentina vendeu o Observatório astronômico de San Miguel (1977), adquirido pela Força Aérea Argentina. Longe de ser um apoio ao regime ditatorial, foi uma transação que garantiu a continuidade de um serviço científico, que a Companhia de Jesus não podia sustentar, por falta de recursos humanos e financeiros.


Atuação de Bergoglio na Província Argentina

              Durante seu mandato de provincial (1973-1979), Bergoglio teve que tomar decisões importantes, tanto na área administrativa como no campo pastoral. Transferiu a Cúria da Província Argentina para San Miguel, no mesmo edifício das Faculdades de Filosofia e Teologia. Dedicou jesuítas à animação vocacional, conseguindo um notável aumento das entradas no Noviciado, concentrou e acompanhou de perto a formação dos jesuítas argentinos, resolveu a dívida da Universidade de El Salvador, traspassando-a para um grupo de leigos, fortaleceu a presença dos jesuítas na Universidade Católica de Córdoba e nas Faculdades de Filosofia e Teologia de San Miguel; intensificou o compromisso da Companhia com os mais necessitados, apoiou a presença de jesuítas em paróquias e capelas da grande Buenos Aires; formou um grupo de jesuítas dedicado ao trabalho paroquial em regiões carentes do interior da Argentina, valorizando a religiosidade popular.

            Como provincial, Bergoglio participou da Congregação Geral 32ª da Companhia de Jesus (1974-1975). Ele foi um dos membros mais jovens desta Congregação, que marcou decisivamente a missão atual da Companhia, definindo-a como “o serviço da fé e a promoção da justiça” (decreto 4º). Posteriormente, nos anos 1980, foi eleito para participar da Congregação Geral 33ª e da Congregação de Procuradores de 1987.


            Concluído seu mandato de provincial, Bergoglio foi Reitor do Colégio Máximo de San Miguel (1979-1985), professor de Teologia, primeiro pároco da paróquia do Patriarca São José e assessor nacional da CVX (Comunidade de Vida Cristã). No seu reitorado, incentivou o estudo da literatura e da história, como preparação para os estudos filosóficos e teológicos e construiu uma nova biblioteca. Ainda favoreceu a instalação no Colégio Máximo de um Centro de Formação Profissional, em San Miguel, e de um Colégio de Ensino Secundário para adultos da região. Desenvolveu, enfim, uma importante tarefa evangelizadora e educacional, com a participação dos jesuítas em formação.


Uma lembrança pessoal ilustrará a disponibilidade deste homem tão cheio de ocupações. Em 1985, sendo eu Mestre de Noviços, tive que participar de uma reunião em Montevideo. Avisei Bergoglio que faria escala em Buenos Aires, mas sem poder sair do aeroporto. Ele foi ao aeroporto e conseguiu entrar na sala de passageiros em trânsito, para me cumprimentar. 

            Terminado seu mandato de Reitor em San Miguel, passou seis meses na Alemanha, para redigir sua tese de Doutorado em Teologia. A tese tratava de Romano Guardini, cujos escritos Bergoglio considerava muito úteis para a formação dos jovens.


Nos anos 1986-1989, Bergoglio residia na comunidade da igreja de El Salvador, no centro de Buenos Aires, fazia parte da redação do Boletín de Espiritualidad da Província argentina e ensinava Teologia Pastoral no Colégio Máximo.

            Em 1990, Bergoglio foi destinado a Córdoba, como diretor espiritual e confessor na Igreja da Companhia de Jesus. Córdoba é a cidade argentina com mais vida universitária, depois de Buenos Aires. Mas, depois de ter exercido cargos de maior responsabilidade, a transferência a Córdoba significou para ele certa marginalização na Província Argentina. No entanto, Bergoglio tinha prestígio entre o clero diocesano e uma parte da Província, que se tinha formado com ele.


Naquela época, era voz comum na Companhia que a Província Argentina estava dividida. Tanto é assim que, o governo geral da Companhia nomeou superior provincial da Argentina um padre colombiano: Álvaro Restrepo. Em recente entrevista, este disse: “Quando cheguei à Argentina, eu pensei que iria encontrar uma divisão entre ‘conservadores’ e ‘progressistas’. Mas descobri que era um problema de lideranças. Uns seguiam a formação de Jorge Mario (Bergoglio) e outros eram mais novos, uma geração diferente”.[8]

Dez anos depois de sofrer essas tensões internas na Companhia de Jesus, Bergoglio seria a figura mais destacada da Igreja na Argentina.


O bispo Bergoglio

A mudança veio pela mão do cardeal Antonio Quarracino, arcebispo de Buenos Aires, que em 1992, indicou Bergoglio para ser seu bispo auxiliar. “É um jesuíta sereno e preciso. Ele tem uma capacidade e uma velocidade mental fora do comum”, teria dito o cardeal.[9] E Bergoglio não o decepcionou. Ordenado bispo, no dia 27 de junho de 1992, cinco anos depois, seria o sucessor do Arcebispo Quarracino.

Nesse mesmo ano de 1992, em outubro, encontrei-me com Bergoglio pela última vez. Por ocasião de outra reunião de Mestres de Noviços, em Buenos Aires, visitei-o em uma Casa do Clero, onde morava. Recebeu-me com a cordialidade de sempre. Convidou-me a almoçar e conversamos bastante. Contou-me que, em outras ocasiões, já tinham tentado nomeá-lo bispo e ele não aceitara. “Mas, deste vez, o pedido veio muito forte e não tive como recusá-lo”. Disse-me isso quase desculpando-se, pois é sabido que os jesuítas prometemos não aceitar o episcopado, a não ser por obediência ao Papa. Quanto à sua situação anterior na Companhia, Bergoglio não me disse uma só palavra de queixa. Ele era uma pessoa humilde, que encarava a realidade da vida e a diversidade das pessoas do jeito que são.

Nunca mais encontrei o atual Papa. Lembro-me de lhe ter enviado meu livrinho Experiência de Deus: presença e saudade (2000). Ele me havia enviado, antes, seus três primeiros livros Meditaciones para religiosos (1982), Reflexiones sobre la vida apostólica (1986) e Reflexiones en esperanza (1992). Neste último, escreveu-me uma afetuosa dedicatória. Deixei os três livros na biblioteca Armando Cardoso, de Itaici. Como poderia eu imaginar que seu autor seria feito Papa?

Em 1997, Bergoglio foi nomeado Arcebispo de Buenos Aires. As pessoas que tiveram contato com ele, nesta época, dizem que era conhecido pela sua austeridade e simplicidade de vida. Em lugar de morar no palácio episcopal, vivia sozinho em um pequeno apartamento, no segundo andar da Curia do Arcebispado, e preparava sua  própria comida. “O meu povo é pobre – dizia - e eu sou um deles”.

Uma religiosa argentina testemunha: “Nunca o vi com guarda-costas pessoal, nem com motoristas. Em geral, se deslocava por meio do transporte público”. Foi, sobretudo, um “pastor” que colocou a arquidiocese em estado de “missão”. Ele exortava os fiéis a não permanecerem fechados nas sacristias, mas a saírem ao encontro dos mais necessitados, tanto material como espiritualmente.


Os padres mais novos tinham sincero afeto pelo seu Arcebispo. Bergoglio lhes recomendava serem misericordiosos, corajosos e terem as portas abertas para o povo. A pior coisa que pode acontecer à Igreja, dizia, é o que de Lubac chama “mundanidade espiritual”, que significa “colocar no centro o próprio eu”.[10] Sensível aos problemas sociais, o Arcebispo Bergoglio apoiava os chamados padres “villeros” (sacerdotes que trabalham nas “Villas Miseria”, as favelas da Argentina).

Recém nomeado papa, Francisco disse: “O bom sacerdote reconhece-se quando o povo é ungido com óleo de alegria, quando sai da missa com o rosto de quem recebeu uma boa notícia (...), quando o Evangelho que pregamos chega ao seu dia a dia, quando ilumina as situações extremas. O óleo precioso, que unge a cabeça de Aarão, não se limita a perfumá-lo a ele, mas espalha-se e atinge ‘as periferias’”. O Papa Bergoglio chama de “periferias existenciais” as situações limite, na fronteira do humano,  onde vivem os pobres, os presos, os doentes, os abandonados.

Bergoglio mostrou sempre uma grande sintonia com a piedade popular latino-americana. Lembro-me de que na correspondência ocasional que me enviava (felicitações de Natal e coisas semelhantes), sempre enviava junto alguma imagem de Nossa Senhora, de São José, etc. No seu brasão episcopal, agora mantido como brasão pontifício, figuram três símbolos: o IHS, característico da Companhia de Jesus, uma estrela, representativa de Nossa Senhora, e uma flor de nardo, simbolizando a devoção a São José.

O lema que acompanha o brasão do novo papa merece uma explicação. Miserando atque eligendo significa "tendo compaixão dele, escolheu-o". A frase esta tirada de São Beda, o Venerável, que foi um Padre da Igreja do século VIII. Na sua homilia 21, este santo Padre comenta a vocação de São Mateus (Mt 9,9) com estas palavras: “Jesus viu o publicano e, porque dele se compadeceu e o escolheu [miserando atque eligendo], dize-lhe: ‘Segue-me’”.[11] Para entender a razão pela qual Bergoglio escolheu este lema, devemos lembrar que foi numa festa de São Mateus, em que se lê o texto Mt 9,9-13, que o jovem Jorge Mário teve uma forte experiência da presença de Deus em sua vida. Ao ser chamado ao episcopado, Bergoglio escolheu a frase de São Beda, para expressar que Jesus o elegeu por pura misericórdia.


No consistório do dia 21 de fevereiro de 2001, João Paulo II o fez cardeal, com o título de São Roberto Bellarmino. Como Cardeal Primaz da Igreja Argentina, conservou seus hábitos modestos e afáveis. Em certa ocasião, foi a Madri para pregar um Retiro aos bispos espanhois. Meu irmão, Calixto, convidou-o a jantar em sua casa. O cardeal Bergoglio aceitou, dando mais uma prova de amizade e simplicidade.

No mês de outubro de 2001, o cardeal Bergoglio foi nomeado relator geral adjunto, na X Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, dedicada ao ministério episcopal. O principal relator, cardeal Egan, arcebispo de Nova York, teve que regressar aos Estados Unidos, devido aos atentados terroristas do 11 de setembro daquele ano. O cardeal Bergoglio assumiu o trabalho, tornando-se mais conhecido internacionalmente.

No ano 2002, Bergoglio recusou o cargo de presidente da Conferência episcopal argentina, mas três anos depois, novamente eleito, assumiu. Em 2005, participou do conclave que elegeu Bento XVI, sendo o segundo mais votado, segundo vazou para a imprensa. O jornalista Marco Tosatti descobriu, graças a uma fonte de total solvência, que Bergoglio pediu aos que votavam nele, quase com lágrimas, que se abstivessem de elegê-lo.[12]  Na primeira votação, Ratzinger teria tido 47 votos, Bergoglio, 10 e Martini, 9. Na segunda, Ratzinger, 65 e Bergoglio, 35. Na terceira, após o pedido de Bergoglio, Ratzinger obteve 84 votos (mais dos dois terços necessários para eleger-se), enquanto 26 votos ainda foram para Bergoglio.

Em maio de 2007, participou da 5ª Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho, na qual foi o coordenador da equipe de redação do documento final. O Papa Francisco já manifestou seu desejo de visitar Aparecida, depois da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro.
 

Reeleito presidente da Conferência episcopal, em 2008, o cardeal Bergoglio, enfrentou-se repetidamente com o governo de Néstor Kirchner e com o de sua esposa e sucessora Cristina Kirchner. O ápice de tais enfrentamentos aconteceu por ocasião do projeto de lei que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em julho de 2010.

Uma eleição surpreendente


Ainda é cedo para sabermos, com certeza, o que aconteceu no último conclave. Sabemos apenas que o cardeal Bergoglio foi eleito no quinto escrutínio. O cardeal Angelo Comastri, arcipreste da basílica de São Pedro, contou – com licença do Papa Francisco – que, quando este foi eleito e devia dizer se aceitava, disse: “Sou um grande pecador. Confiando na misericórdia e na paciência de Deus, no sofrimento, eu aceito”.

A eleição do cardeal Bergoglio foi uma surpresa. Seu nome não estava nas listas dos favoritos. Trata-se do primeiro Papa latino-americano. E de um jesuíta, contradizendo a tradição inaciana. As primeiras reações, porém, estão sendo muito positivas. A impressão geral é que a eleição do Papa Francisco foi “uma boa surpresa”. A imprensa internacional está lhe dedicando uma atenção extraordinária neste começo do seu pontificado. Ele, que tinha fama de tímido e esquivo, avesso a entrevistas, tornou-se, de um dia para o outro, uma autêntica “estrela midiática”.[13]

Os primeiros gestos do novo Papa cativaram muitos, tanto crentes como agnósticos. Na sua primeira aparição na sacada da basílica de São Pedro, mostrou-se tranquilo, simples e próximo das pessoas. Vestia apenas a batina e a esclavina brancas, sem a mozeta vermelha tradicional nos Papas. Em lugar de uma cruz de ouro, usava a mesma cruz de ferro do seu tempo de bispo. Para deslocar-se, dispensou a limusine exclusiva do pontífice, e usou o mesmo ônibus dos demais cardeais. Passou pela Casa do Clero onde se hospedou em Roma e fez questão de pagar sua conta. Dispensou, também, ao menos “por enquanto”, o espaçoso apartamento pontifício no Palácio Apostólico, preferindo continuar morando na Casa Santa Marta, onde se hospedaram os cardeais durante o conclave. Enfim, nas suas aparições públicas na Praça de São Pedro, substituiu o “papa-movel” fechado por um jipe aberto, que o aproxima mais do povo.

Todos esses sinais reforçam a impressão de que com o Papa Bergoglio abre-se um novo capitulo na história do governo da Igreja. Esta impressão foi reforçada pela escolha do seu nome. O nome “Francisco” evoca claramente seu espírito evangélico de proximidade aos pobres, sua identificação com o povo simples e seu compromisso com a renovação da Igreja.[14]

 O próprio Papa Francisco explicou aos jornalistas as circunstâncias de sua escolha:

Na eleição, tinha ao meu lado o Cardeal Cláudio Hummes, um grande amigo! Quando o caso começava a tornar-se ‘perigoso’, ele animava-me. E, quando os votos atingiram dois terços, surgiu o habitual aplauso. Ele abraçou-me, beijou-me e disse-me: ‘Não te esqueças dos pobres!’ E aquela palavra gravou-se-me aqui [apontando a cabeça]: os pobres, os pobres”. 

“Logo depois, associando com os pobres, pensei em Francisco de Assis. Em seguida pensei nas guerras, enquanto continuava o escrutínio até contar todos os votos. Francisco é o homem da paz. E assim surgiu o nome no meu coração: Francisco de Assis. Para mim, é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e preserva a criação; é o homem que nos dá este espírito de paz, o homem pobre... Ah, como eu queria uma Igreja pobre e para os pobres!” [15]


Um sociólogo prevê que o novo Papa introduzirá no governo da Igreja uma nova linguagem: "Este papa tem um estilo inédito. Batizou um novo sistema de comunicação que mudará a linguagem da Igreja".[16] Já o teólogo Susin observa que, na primeira fala de Francisco ao povo, sua despedida foi semelhante a algumas falas de João XXIII. O Papa Francisco, despediu-se do povo, dizendo simplesmente: “Nós nos veremos em breve, rezem por mim e tenham uma boa noite!”.[17]

Foi notado, também, que o Papa Francisco apresentou-se espontaneamente ao povo romano como o bispo de Roma. Após rezar pelo seu antecessor, Bento XVI, Francisco disse: “E agora iniciamos este caminho, bispo e povo... este caminho da Igreja de Roma, que é aquela que preside a todas as Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros”.

Os teólogos comentaram que, do ponto de vista da legitimidade do encargo pontifício, este é o caminho certo: antes de ser Papa, Francisco é o Bispo de Roma, e, por isso, é o primeiro entre os demais Bispos (primus inter pares). Isso revela um forte acento na “colegialidade episcopal”, o que é um clamor de muitas vozes na Igreja, depois do concílio Vaticano II. Tal visão facilita também o diálogo ecumênico com as demais igrejas cristãs.[18]

Conclusão: Que podemos esperar do novo papa?


Não sou um desses vaticanistas, que aliás erraram nas suas previsões para o último conclave. Mas creio que as primeiras semanas do pontificado do papa Francisco nos permitem prever que, com ele, o governo universal da Igreja será mais simples e misericordioso, mais descentralizado e mais próximo dos problemas reais das pessoas.
Assim como os papas anteriores manifestaram um sincero desejo de manter boas relações com as diversas igrejas cristãs, com as outras religiões e com os não crentes, Francisco expressou também seu desejo de manter e intensificar esse diálogo com todas as pessoas de boa vontade.

Pelo que diz respeito às comunidades católicas, creio que o que se espera é um governo da Igreja mais pastoral. A primeira nomeação do Santo Padre Francisco parece apontar nesse sentido. Francisco escolheu para ser seu sucessor no Arcebispado de Buenos Aires o bispo de Santa Rosa, Mario Aurelio Poli, que tem fama de ser um homem austero, humilde e apaixonado por Cristo. Esta nomeação parece indicar que o novo papa deseja bispos-pastores, que sintonizem com o povo e que sejam homens espirituais e não apenas meros gestores.[19]

            Se tivesse que descrever o Bergoglio que eu conheci, há quarenta anos, eu diria que ele era um homem de fé, um religioso fiel aos seus votos, um padre desejoso de ajudar as pessoas a se relacionar com Deus . Na única carta que conservo do então padre Bergoglio, datada do dia 3 de janeiro de 1984, ele prometia rezar por mim, que estava assumindo, aquele ano, o cargo de Mestre de Noviços, e me pedia que não o esquecesse nas minhas orações.


No dia de sua eleição como bispo de Roma e Papa, “princípio e fundamento” da unidade da Igreja Católica, Francisco inclinou-se profundamente, diante da multidão, pedindo que rezassem por ele, em um momento de silêncio, antes de ele abençoar o povo. De Bergoglio a Francisco parece haver, pois, uma continuidade nesse traço característico das pessoas espirituais: a sincera confiança na oração.

Termino, recolhendo o que os jesuítas podemos prever a respeito do pontificado do nosso irmão Francisco. Por ser jesuíta e por toda sua trajetória histórica, cremos que ele deverá enfatizar a espiritualidade, a oração encarnada na vida. Em segundo lugar, a pobreza, a misericórdia diante de todas as formas de sofrimento humano. Por último, diante de todas as dificuldades e condicionamentos do governo geral da Igreja, esperamos que Francisco mostre uma virtude que era sumamente apreciada por Santo Inácio de Loyola: a liberdade de espírito.

Rezemos, desde já, por este nosso irmão e pai na fé, Francisco, para que as esperanças que ele tem suscitado no início do seu pontificado, venham a se realizar AMDG.[20]

Goiânia, 3 de abril de 2013.

                                               Luís González-Quevedo, sj



[1] Testemunho de Antonio Spadaro, sj. diretor da Civiltá Cattolica, no lançamento do livro do Papa:  Umiltà. La strada verso Dio (Editora EMI), que reúne discursos e homilias do cardeal Bergoglio, durante o seu ministério como arcebispo de Buenos Aires.

[2]  Em 1970, no Congresso Eucarístico Nacional, celebrado em Brasília, um arcebispo me disse que Dom Helder Câmara só mostrava a miséria. “Eu prefiro mostrar outras coisas...”. Hoje, os dois são falecidos. Dom Helder continua sendo uma figura inspiradora. O outro prelado foi esquecido.
[3] Por ter nascido, crescido e convivido com a ditadura franquista, na Espanha, tenho experiência da força de tais acusações.
[4] Emilio Mignone, Iglesia y Dictadura. El papel de la Iglesia a la luz de sus relaciones con el régimen militar. Ediciones del Pensamiento Nacional, 4ª ed. 1987.
[5] Horácio Verbistky, El silêncio: de Paulo VI a Bergoglio. Las relaciones secretas de la Iglesia con la ESMA. Bs.As.: Sudamericana, 2005. Segundo a revista Veja, este autor trabalhava, ao mesmo tempo, para os esquerdistas e para os militares (“Ele lavou as mãos?”, Veja, 20 de março de 2013, p. 81).

[6]Opiniones, Documentos y Homilías de Monseñor Jorge Bergoglio”, in:estudiosnacionales.blogspot.com.br/2013/03 (acessado em 02 abril 2013).

[7] Reportagem de Alejandro Rebossio, publicada pelo jornal El Pais, e reproduzida pelo portal Uol, 22-03-2013 e pelo IHU on-line da mesma data.
 [8]Todo bom papa precisa desconcertar’,  afirma o jesuíta Álvaro Restrepo.  Entrevista a María Isabel Rueda, publicada no jornal colombiano El Tiempo, 17-03-2013. Versão portuguesa em IHU on-line, 20 de março de 2013.
[9] Ariel Palacios e Marcelo Godoy, “O jesuíta leitor de Dostoievski”, O Estado de São Paulo, 14 de março de 2013.
[10] L'Osservatore Romano, Anno LXIII, numero 12, reproduzido em www.vatican.va (acessado em 24.03.2013).
[11] "Vidit ergo lesus publicanum et quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere me". “Viu o publicano, dele se compadeceu e o escolheu”, traduz a edição brasileira da Liturgia das Horas, IV, 1299-1300.
[12] Rubén Amón, “Qué pasó en el Cónclave de 2005?”, El Mundo,11 de marzo de 2013. Curiosamente, o autor descartava a possibilidade do cardeal Bergoglio ser eleito no Conclave deste ano, por ter já 76 anos;
[13] Maria Sainz, “Una modestia muy midiática”, El Mundo, Madrid, 29 de marzo de 2013.
[14] Adolfo Nicolás, superior geral da Companhia de Jesus, Carta a toda a Companhia, 2013/04, 14 de março de 2013.
[15] “Encontro com os representantes dos meios de comunicação” (16 de março de 2013). Em:www.vatican.va, acessado em 24.03.2013. Francisco não é um nome - comenta Leonardo Boff -. É um projeto de Igreja, pobre, simples, evangélica e destituída de todo o poder (...). É uma Igreja ecológica que chama a todos os seres com a doce palavra de ‘irmãos e irmãs’”.[16] 'Francisco irá mudar a linguagem da Igreja''. Entrevista com Franco Ferrarotti, IHU on-line, 20 de março de 2013.
[17] Fratelli e sorelle, vi lascio. Grazie tante dell’accoglienza. Pregate per me e a presto! Ci vediamo presto: domani voglio andare a pregare la Madonna, perché custodisca tutta Roma. Buona notte e buon riposo! (“Primo saluto del Santo Padre Francesco”, 13 marzo 2013, www.vatican.va, acessado em 26.03.2013).

17 Luiz Carlos Susin, OFMCap., em  Zero Hora, Porto Alegre, 14 de março de 2013.

[19] J.M;Vidal, “Nombramientos al estilo Francisco”, El Mundo, 31 de marzo de 2013.
[20] AMDG, Ad Maiorem Dei Gloriam (para a maior glória de Deus).

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