Páginas

domingo, 2 de setembro de 2012

Varios textos sobre o Cardeal Martini

O cardeal italiano Carlo Maria Martini morreu, sexta-feira, dia 31 de agosto de 2012, em Milão, aos 85 anos. O cardeal jesuíta sofria há 10 anos  o Mal de Parkinson.
Eminente intelectual, especialista da Bíblia, autor de dezenas de livros e contribuições teológicas diversas, era muito respeitado para além da esfera progressista, tanto por João Paulo II quanto por Bento XVI, dois meses mais velho que ele, que o visitou em junho em Milão.
O cardeal, que nasceu no dia 15 de fevereiro de 1927 em Turim, foi ordenado sacerdote no dia 13 de julho de 1952. Exegeta de formação, foi nomeado pelo papa Paulo VI reitor do Instituto Bíblico, onde permaneceu até 1968, e depois reitor da prestigiada Universidade Pontifícia Gregoriana em Roma. No fim de 1979, João Paulo II o nomeou arcebispo de Milão, a maior diocese da Europa, que dirigiu por 22 anos.
Sua opinião era muito ouvida dentro da Igreja pela profundidade de de suas análises e por seu humanismo, e denunciou "a tentação" de alguns católicos de "se refugiar" em novos movimentos da Igreja, fornecendo a eles um "valor absoluto" e transformando-os em verdadeiras "ideologias". Também denunciou as "novas pestes" da sociedade, como a droga, e também a corrupção e a solidão.
Em 1999 "teve um sonho": convocar um novo Concílio, um Vaticano III, porque achava que o Vaticano II (1962/65) estava, de certa forma, obsoleto. Em 2007 afirmou que não celebraria a missa em latim, quando ela foi autorizada novamente pela Igreja sob o papado de Bento XVI.
Antes de se aposentar, em julho de 2002, à idade canônica de 75 anos, realizou seu sonho: ir a Jerusalém. Neste ano também anunciou que sofria de Parkinson. Voltou à Itália em 2008, onde se retirou em uma casa de estudos jesuítas em Gallarate, no noroeste de Milão.
Seguem alguns textos, artigos e entrevistas sobre o cardeal Martini.

''A Igreja retrocedeu 200 anos. Por que temos medo?''

O padre Georg Sporschill, o coirmão jesuíta que entrevistou o cardeal em Diálogos noturnos em Jerusalém, e Federica Radice se encontraram com Martini no dia 8 de agosto: "Uma espécie de testamento espiritual. O cardeal Martini leu e aprovou o texto".
A entrevista é de Georg Sporschill e Federica Radice Fossati Confalonieri, publicada no jornal Corriere della Sera, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.

Como o senhor vê a situação da Igreja?
A Igreja está cansada na Europa do bem-estar e na América. A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes, as nossas casas religiosas estão vazias, e o aparato burocrático da Igreja aumenta, os nossos ritos e os nossos hábitos são pomposos. Essas coisas expressam o que nós somos hoje? (...)
O bem-estar pesa. Nós nos encontramos como o jovem rico que, triste, foi embora quando Jesus o chamou para fazer com que ele se tornasse seu discípulo. Eu sei que não podemos deixar tudo com facilidade. Menos ainda, porém, poderemos buscar pessoas que sejam livres e mais próximas do próximo, como foram o bispo Romero e os mártires jesuítas de El Salvador. Onde estão entre nós os nossos heróis para nos inspirar? Por nenhuma razão devemos limitá-los com os vínculos da instituição.

Quem pode ajudar a Igreja hoje?O padre Karl Rahner usava de bom grado a imagem das brasas que se escondem sob as cinzas. Eu vejo na Igreja de hoje tantas cinzas sobre as brasas que muitas vezes me assola uma sensação de impotência. Como se pode livrar as brasas das cinzas de modo a revigorar a chama do amor? Em primeiro lugar, devemos procurar essas brasas. Onde estão as pessoas individuais cheias de generosidade como o bom samaritano? Que têm fé como o centurião romano? Que são entusiastas como João Batista? Que ousam o novo como Paulo? Que são fiéis como Maria de Mágdala? Eu aconselho o papa e os bispos a procurar 12 pessoas fora da linha para os postos de direção. Pessoas que estejam perto dos pobres e que estejam cercadas por jovens e que experimentam coisas novas. Precisamos do confronto com pessoas que ardem, de modo que o espírito pode se difundir por toda parte.
Que instrumentos o senhor aconselha contra o cansaço da Igreja?Eu aconselho três instrumentos muito fortes. O primeiro é a conversão: a Igreja deve reconhecer os próprios erros e deve percorrer um caminho radical de mudança, começando pelo papa e pelos bispos. Os escândalos da pedofilia nos levam a tomar um caminho de conversão. As questões sobre a sexualidade e sobre todos os temas que envolvem o corpo são um exemplo disso. Estes são importantes para todos e, às vezes, talvez, são até importantes demais. Devemos nos perguntar se as pessoas ainda ouvem os conselhos da Igreja em matéria sexual. A Igreja ainda é uma autoridade de referência nesse campo ou somente uma caricatura na mídia?
O segundo é a Palavra de Deus. O Concílio Vaticano II restituiu a Bíblia aos católicos. (...) Somente quem percebe no seu coração essa Palavra pode fazer parte daqueles que ajudarão a renovação da Igreja e saberão responder às perguntas pessoais com uma escolha justa. A Palavra de Deus é simples e busca como companheiro um coração que escute (...). Nem o clero nem o Direito eclesial podem substituir a interioridade do ser humano. Todas as regras externas, as leis, os dogmas nos foram dados para esclarecer a voz interior e para o discernimento dos espíritos.
Para quem são os sacramentos? Estes são o terceiro instrumento de cura. Os sacramentos não são uma ferramenta para a disciplina, mas sim uma ajuda para as pessoas nos momentos do caminho e nas fraquezas da vida. Levamos os sacramentos às pessoas que precisam de uma nova força? Eu penso em todos os divorciados e nos casais em segunda união, nas famílias ampliadas. Eles precisam de uma proteção especial. A Igreja sustenta a indissolubilidade do matrimônio. É uma graça quando um casamento e uma família conseguem isso (...).
A atitude que temos com relação às famílias ampliadas irá determinar a aproximação à Igreja da geração dos filhos. Uma mulher foi abandonada pelo marido e encontra um novo companheiro que cuida dela e dos seus três filhos. O segundo amor prospera. Se essa família for discriminada, não só a mãe é cortada fora, mas também os seus filhos. Se os pais se sentem fora da Igreja, ou não sentem o seu apoio, a Igreja perderá a geração futura. Antes da Comunhão, nós rezamos: "Senhor, eu não sou digno...". Nós sabemos que não somos dignos (...). O amor é graça. O amor é um dom. A questão sobre se os divorciados podem comungar deve ser invertida. Como a Igreja pode ajudar com a força dos sacramentos aqueles que têm situações familiares complexas?

O que o senhor faz pessoalmente?
 Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem. Eu sou velho e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir o amor. Esse amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes eu percebo com relação à Igreja na Europa. Só o amor vence o cansaço. Deus é Amor. Eu ainda tenho uma pergunta para você: o que você pode fazer pela Igreja?

''A abertura de Martini aos não crentes foi um ato de responsabilidade''.

Entrevista com Massimo Cacciari
Uma fé rigorosa, testemunhada com perfeito estilo inaciano, tanto na pastoral quanto no âmbito cultural. Uma fé que não admitia compromissos, mas aceitava as diversidades. E que, como tal, sabia produzir relação, diálogo, até com os não crentes. A afirmação, lembrando o amigo "Carlo Maria", é do filósofo Massimo Cacciari.
A reportagem é de Francesco Dal Mas, publicada no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Eu conheci o cardeal Martini em 1984-85, quando ele me expôs a sua ideia de dar origem naquela época à cátedra dos não crentes. Eu colaborei com ele na definição do projeto e da primeira edição, quando o tema era o fundamental, isto é, a dinâmica da fé com relação ao século, e, por isso, como o crente se relaciona com o não crente, também com o ateu".
Eis a entrevista.
A partir de qual pressuposto vocês partiram? Um passo atrás, cada um?Não, no máximo um passo à frente cada um. Partia-se de um princípio fundamental, que a cada dia o próprio crente duvida da própria fé, mas para reafirmá-la com mais força. Justamente por isso a cátedra era um diálogo verdadeiro. Nesse âmbito, não buscávamos o compromisso fácil, fácil demais, banal demais.
Do diálogo e do confronto brotavam as diferenças. Mas que não levavam ao distanciamento...
Absolutamente não. A fé que Martini testemunhou na sua vida e que deixou clara também nessa cátedra é a fé que responsabiliza.

E qual é a fé que responsabiliza?É aquela que é capaz de responder. E de responder a todas as perguntas do século, além de qualquer separação abstrata entre intelecto e razão, entre crença e não crença. Uma fé adulta, que compreende o século e que, como fé, é capaz de dar respostas concretas. Nada a ver com relativismo.
Aqui também tem relação a mística inaciana de Martini?
Seguramente. É a fé sem moralismos, sem sentimentalismos, atenta, competente, capaz. É a oração sólida e também rigorosa.
Foi o rigor de Martini, portanto, que interpelou os intelectuais, mesmo aqueles não crentes?
Falo por mim mesmo. Eu me sinto interpelado pelo crente que se reconhece como crente apenas no debate com o não crente. Eu sempre tive relações com essa fé nunca negligente, sempre "inteligente".
A fé popular também é assim?
Seguramente, quando é genuína. Martini teve uma extraordinária relação com a intelligentsia secular, a verdadeira intelligentsia secular, não aquela que acredita que a religião é um sintoma de superstição infantil. Ele forçou esses intelectuais a se interrogar sobre questões de ordem geral, mas também muito concretas. Como não lembrar do engajamento civil e social de Martini, os seus discursos sobre o trabalho, sobre a crise econômica, sobre as questões éticas. E como esquecer o modo com que Martini se expressava. Inacianamente, isto é, em termos sempre ordenados. Por outro lado, a mística inaciana ensina a nunca se deixar vencer por paixões desordenadas. Recordamos nesse sentido a classe de Martini, sintoma exterior de uma alma profundamente inaciana.
Totalmente ao contrário, portanto, daqueles que afirmaram que na Cátedra dos Não Crentes se ensinava – até mesmo da sua parte, professor Cacciari – a viver sem fé e sem certezas...

Como é possível escrever essas tolices? Sabe qual era a verdadeira extraordinariedade de Martini?
Qual?
A profunda convicção da absolutez do cristianismo. Se Jesus fosse um mestre como tantos outros, por que alguém deveria se dizer cristão? Martini, essa sua fé tão profunda, rigorosa, embora atravessada por temores e tremores, ele soube vivê-la, não só testemunhá-la, até produzir diálogo, debate, compreensão, misericórdia. É uma fé, a sua, que se fez próxima. Longe de dizer: "Queiramo-nos bem, abracemo-nos juntos porque somos todos iguais".
Fé e solidariedade. Eis outro binômio que aproximou os intelectuais.
Escrevemos sobre isso juntos novamente em 1995, quando até dissemos que era preciso criar uma rede de solidariedade contra a intolerância.

Martini também fará falta à intelligentsia secular?Seguramente fará falta a nós, intelectuais, assim como à Igreja. Ele havia compreendido que as formas da pregação do Verbo são radicalmente insuficientes, viciadas por moralismos, por culturalismos, em toda uma série de questões. Mesmo de fronteira. E ele sofria enormemente por causa disso.


A fé e a dúvida.
Artigo de Eugenio Scalfari
Para Martini, a fé é ao mesmo tempo contemplação e ação, mas são dois movimentos da alma intimamente conectados. A contemplação é solitária, a ação é solidária e pastoral.
A opinião é de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Ouso pensar que foi um momento sereno ou até mesmo feliz o de Carlo Maria Martini quando decidiu ser desligado das máquinas que ainda o mantinham com vida e permitir-lhe entrar no céu das bem-aventuranças, se Deus quiser.
Nós conversamos frequentemente sobre isso em nossos encontros. Ele dizia que a sua fé era forte, mas se confrontava todos os dias com as dúvidas. Não sobre a fé, mas sobre o modo de usá-lo, de fazê-la viver com os outros e para os outros. A fé – assim dizia – é ao mesmo tempo contemplação e ação, mas são dois movimentos da alma intimamente conectados. A contemplação é solitária, a ação é solidária e pastoral.
Eu, de um ponto de vista totalmente diferente, objetava que a dúvida sobre a ação acaba envolvendo a fé na sua inteireza. Ele, quando eu lhe fiz essa observação, respondeu que, de fato, todos os dias quem tem fé deve reconquistá-la. Essa é a tarefa do cristão e, em particular, do bispo, sucessor dos apóstolos: colocar sua fé ao serviço dos outros, portanto, colocá-la em jogo e, junto com os outros, junto com as ovelhas perdidas, reconquistá-la.
Um dia eu lhe perguntei qual era para ele o momento culminante da vida de Jesus: o discurso da montanha, a ultima ceia, a oração no horto do Getsêmani, o interrogatório diante de Pilatos, as "estações" da Paixão ou, por fim, a crucificação e a morte. "Não – respondeu –, o momento culminante é a Ressurreição, quando se abre o seu sepulcro e aparece a Maria e a Madalena. E, depois, transfigurado aos apóstolos, aos quais confia a tarefa de ir e pregar".
Martini foi e pregou; se confrontou, privilegiou os jovens padres e os leigos mais distantes e considerou a morte como o instante em que se atravessa a porta que conduz à contemplação eterna na luz do Senhor. A alma abandona o corpo onde estava encerrada, onde fez a experiência dos pecados, onde se mediu com as tentações, onde rezou pelos outros à espera desse momento supremo. Por isso, ouso pensar que decidir ir em paz foi o instante feliz da sua vida.
Eu não tenho fé no além e não a busco. Ele sabia disso e nunca fez nada para me converter. Não era essa a sua pastoralidade, ao menos comigo. Ele queria me oferecer a sua experiência e talvez utilizar a minha. Mas qual experiência? Certamente não a do mundo, mas sim a da alma, dos instintos, dos sentimentos, dos pensamentos.
A última vez que nos encontramos, no inverno passado, eu lhe levei o meu último livro intitulado Eros, que certamente não é uma divindade cristã. Ele já não falava mais, sussurrava, e o seu assistente, Pe. Damiano, lia o movimento dos seus lábios e o traduzia. Mas depois de ter revirado o livro entre as mãos trêmulas, ele me perguntou (e o Pe. Damiano traduziu) se o protagonista do livro era o amor, e eu respondi que sim, que era um livro sobre o amor e, acima de tudo, sobre o amor pelos outros. E ele fez "sim" com a cabeça, para dizer que o presente lhe agradava.
O amor pelos outros é o modo que Jesus indicou como o único que conduz a Deus, a caritas, o ágape. Essa é a tarefa da Igreja apostólica: a caritas para chegar a Deus através do filho que se fez homem.
Quando nos despedimos, ele me sussurrou ao ouvido: "Rezarei pelo senhor", e eu respondi: vou pensar no senhor. E ele me sussurrou ainda: "Igual".
Hoje, penso muito nele. Ele, à imagem daquele instante final, certamente pensou que estava atravessando a porta da vida eterna. E eu acho que ele pensou nisso, e isso me consola pela sua perda.


Martini, um homem de Deus. Artigo de Vito Mancuso
Cardeal, arcebispo, biblista, escritor, reitor, jesuíta: a resposta que capta as peculiaridades da pessoa de Martini é obtida dizendo que ele foi um homem de Deus.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Università San Raffaele, de Milão, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Quem foi Carlo Maria Martini?
Pode-se responder dizendo que foi um cardeal durante um longo tempo papável, o arcebispo por mais de 20 anos de uma das maiores dioceses do mundo, o presidente durante uma década do Conselho das Conferências Episcopais Europeias.
Um biblista na origem da edição crítica mais creditada em nível internacional do Novo Testamento (The Greek New Testament), o reitor de duas das mais prestigiadas instituições acadêmicas do mundo católico (Universidade Gregoriana e Instituto Bíblico), um especialista pregador de exercícios espirituais para todas as categorias de pessoas, um jesuíta daquela gloriosa e discutida Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, um autor com uma vasta bibliografia em diversas línguas, e outras coisas ainda. Mas a resposta que capta as peculiaridades da sua pessoa é obtida dizendo que ele foi um homem de Deus.
A característica essencial da sua pessoa e da sua mensagem está toda contida no título do primeiro documento programático que ele dirigiu à diocese de Milão no início do seu episcopado em 1980: A dimensão contemplativa da vida. A esse objetivo, ele educou com os seus ensinamentos e ainda mais com toda a sua pessoa, com a voz, o olhar, o comportamento.
Aproximar-se de Martini significava, de fato, entrever o que de mais alto pode habitar no peito de um homem, ou seja, a inteligência que serve incondicionalmente ao bem e à justiça e que nunca cessa, nem mesmo diante dos absurdos e das tragédias da vida, de alimentar uma esperança singular no sentido e na direção da vida.
Se a expressão "nobreza de espírito", tão cara a Mestre Eckhart e a Thomas Mann, significa alguma coisa, trata-se da tentativa de descrever a experiência suscitada pelo encontro com pessoas como Martini, profundamente homens, mas também tão diferentes do que é simplesmente humano, totalmente transparentes, mas não isentos de silente mistério.
Martini foi um dos expoentes mais significativos do que é normalmente definido como catolicismo progressista, isto é, aquele ideal de ser cristão não contra, mas sempre e somente a favor da vida do mundo. Nisso, ele representou um dos mais belos frutos do Concílio Vaticano II e daquela estação que acreditava na renovação da Igreja em autêntica fidelidade ao Evangelho de Cristo, sem mais nenhum compromisso com o poder.
Agora que ele está morto, essa estação se afasta cada vez mais e se tornam cada vez mais raras, no mundo católico italiano, as vozes proféticas. Mas justamente a propósito de profecia, é necessário enfatizar a sua livre autodeterminação de enfrentar a morte de modo totalmente natural, sem sondas nasogástricas ou outros aparelhos do gênero disponibilizados pela técnica, na plena confiança de quem sabe que está para entrar naquela dimensão eterna que a fé chama de "casa do Pai".
Seja-me concedida, por fim, uma recordação pessoal daquele que foi o meu pai espiritual. Se eu, de fato, comecei a viver seriamente a fé cristã, foi principalmente por causa dele: como bispo da minha diocese, ele fazia resplandecer na minha jovem mente de estudante o ideal cristão. O que me conquistou, desde os seus primeiros discursos que eu lia ou escutava, foi a linguagem. Antes ainda das coisas que ele dizia, o que capturava a minha jovem atenção era o modo com que ele as dizia, totalmente desprovido de retórica eclesiástica, mas ao mesmo tempo tão diferente com relação à linguagem cotidiana, um modo de falar que sabia perceber um outro mundo sem ser "do outro mundo".
As suas palavras eram simples, mas severas, compreensíveis, mas profundas, elementares, mas arcanas, e sobretudo sempre referidas às coisas e às situações, nunca ditas por si mesmas, para impactar o auditório. Eu era pouco mais do que um menino e certamente, naquela época, não saberia dizer nada das características da sua linguagem, mas percebia dentro de mim a autenticidade existencial, sentia um estilo diferente, nada eclesiástico, mas nem por isso desprovido de sacralidade, ao contrário, a ponto de me fazer sentir que havia verdadeiramente algo de sagrado na existência concreta dos seres humanos que devia ser servida com retidão, integridade e amor. E isso Carlo Maria Martini fez, em fidelidade a Deus e aos seres humanos, por toda a sua longa vida.


Martini e as quatro estações. Artigo de Gianfranco Ravasi

Martini soube apresentar tanto o Deus glorioso do Sinai e da Páscoa, mas – também e sobretudo com o seu episódio final – até mesmo o Deus mudo do Calvário que não responde nem ao Filho.
A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
Na obra muito árdua de compor um retrato não só histórico-eclesial do cardeal Carlo Maria Martini poderia ajudar uma espécie de parábola indiana cara a ele, porque ele teve a oportunidade de evocá-la mais de uma vez.
Ela é substancialmente uma metáfora da própria existência humana, dividida em quatro estações fundamentais.
Acima de tudo, há o momento do aprender e da escuta, quando somos discípulos e começamos, levados pela mão, ao longo dos percursos do conhecer, do aprender, do estudar. Foi essa a etapa primária de Martini, quando ele teve que seguir o longo itinerário da formação na Companhia de Jesus, um arco cronológico nada breve, que se assomava aos estudos escolares precedentes e que desembocava no horizonte da espiritualidade inaciana, para depois escalar ao longo dos caminhos acadêmicos. Estes lhe ofereceram todo o equipamento científico para cultivar aquela disciplina que seria uma característica típica da sua personalidade, isto é, a exegese bíblica.
Foi justamente dessa etapa que derivou espontaneamente a segunda, a que o apólogo indiano define como o tempo do ensinamento, do comunicar a outros o que se adquiriu, reelaborando-o, aprofundando-o e tornando-o mais pessoal e original. Martini, como se sabe, foi por muito tempo professor em Roma de crítica textual bíblica. Dessa maneira, Martini se tornou um dos maiores especialistas em nível internacionais, a ponto de ser cooptado para um restrito núcleo de estudiosos de outras nacionalidades e até mesmo de diversas confissões cristãs para preparar o Greek New Testament, uma rigorosa edição crítica do texto grego neotestamentário, resenhando-o e selecionando o imenso patrimônio de papiros, códices e textos diversos que nos transmitiram as sagradas escrituras cristãs.
Foi justamente exercendo essa disciplina que floresceu nele não só o amor pela Palavra divina, mas também pelas palavras humanas concretas em que ela se expressa, termos a serem examinados filologicamente, mas também a serem redescobertos na sua rica potencialidade semântica.
É é justamente dessa estação, da qual também este que escreve estas linhas foi testemunha como aluno, que nasceu quase de improviso uma ulterior atuação da sua função de mestre. A partir do fim de dezembro de 1979, por mais de "três semanas de anos", como ele gostava de dizer, até 2002, ele foi de fato pastor, pai e mestre de uma das Igrejas mais vastas e mais importantes do mundo, a de Milão.
Foi esse o centro da sua existência, um ministério de bispo que – no estilo de Santo Ambrósio – se alargava a toda a cidade, à sua frenética cotidianidade, à sua viva cultura e operosidade, mas também aos seus problemas e aos seus dramas, pontuados por anos muitas vezes atormentados em que, na queda das vozes das outras instituições e agências públicas, se elevava alta mas pacata, severa mas serena, forte mas delicada, incisiva mas discreta a voz desse verdadeiro mestre e guia. Uma voz que ressoava também além das fronteiras da diocese, em tantas outras nações onde a sua presença era esperada e apreciada.
Dessa fase, a mais conhecida e estudada, restam milhares de testemunhas: é emblemático, por exemplo, o "Meridiano" que a editora Mondadori dedicou no ano passado aos escritos do cardeal, em que, mesmo na seleção textual, se abriu um verdadeiro mapa da ação pastoral, magisterial e cultural de Martini.
Mas sobretudo permanecem as múltiplas iniciativas implementadas, a partir daquela "Cátedra dos Não Crentes" que criou um verdadeiro modelo de debate com o mundo "secular". Crentes e não crentes, embora plantados em territórios diferentes, eram convidados a não se encerrar em um isolacionismo sacro ou secular, ignorando-se ou, pior, adotando a atitude da rejeição fundamentalista recíproca.
Florescia, assim, em Milão, a flor do diálogo em torno de temas capitais do ser e da existência, nos quais todos estão envolvidos e às vezes até mesmo sacudidos. Bastaria percorrer os títulos daquelas "Cátedras" para descobrir um verdadeiro arco-íris de iridescências temáticas que ainda hoje constituem o programa sobre o qual deve se confrontar tanto a Igreja quanto a sociedade.
Mas a terceira estação já estava à porta: no fim dos 75 anos, o cardeal Martini decidiu que, para ele – assim como para aquele texto sapiencial indiano – iniciava uma nova experiência, aquela sugestivamente chamada do "bosque", isto é, o retiro no silêncio.
Foi esse o breve mas intenso período de estada na terceira cidade amada, depois de Roma e de Milão, isto é, Jerusalém. Lá, Martini reencontrava as próprias raízes da fé límpida e profunda; lá, ainda sentia ecoar as vozes dos profetas, mas sobretudo compartilhava o pulsar da presença de Cristo. Na faixa transversal do seu brasão episcopal, estão encrustados três corações: poderíamos idealmente imaginar que eles são os símbolos das três cidades que, no desejo do cardeal, teriam selado todo o arco da sua existência até aquele túmulo nas encostas do Monte das Oliveiras, diante do vale de Josafá, onde ele queria esperar a parusia, a vinda plena e definitiva do Cristo para concluir a história.
Em vez disso, lhe esperava a quarta estação daquela parábola, ou seja, o tempo "do mendicante", marcado idealmente pelas palavras que Jesus dirige a Pedro, o primeiro dos apóstolos: "Quando você era jovem, você se vestia sozinho e ia para onde queria. Mas quando você ficar mais velho, estenderá as suas mãos, e outro te vestirá e o levará para onde você não quer ir" (João 21, 18). Foram os últimos anos em que a doença o havia tornado "mendicante", isto é, necessitado dos outros, sobretudo daqueles que haviam sido o ventre das suas origens, ou seja, os jesuítas.
Foi assim que ele escolheu como espaço extremo de espera pelo momento do encontro pleno e direto com Deus, "face a face", como escrevera o apóstolo Paulo, a comunidade religiosa de Gallarate. O seu crepúsculo não foi esmaecido e inerte; a sua voz, já flébil, ainda ressoava; a sua palavra continuava sendo para muitas pessoas, cristãs ou não, um ponto de referência; as suas palavras escritas através das teclas leves de um computador ou através das mãos de quem estava ao seu lado continuavam consolando, mas também provocando, inspirando confiança, mas também inquietando as consciências torpes. Ele ainda continuava sendo uma presença insubstituível, cujo vazio será percebido durante muito tempo.
Havia um texto da tradição judaica particularmente caro ao cardeal Martini, a tal ponto de ter feito dele o título de uma das "Cátedras dos Não Crentes". É uma passagem do livro bíblico do Êxodo que diz assim: "Quem é como tu entre os deuses?" (15, 11). Trata-se de uma solene e poderosa profissão de fé no Onipotente Salvador. Pois bem, curiosamente, o midrash, isto é, a explicação da tradição judaica, oferece uma surpreendente e até mesmo desconcertante variante. Mi kamoka ba-'elim, "quem é como tu entre os deuses?" se transforma em um mi kamoka ba-'illemim, "quem é como tu entre os mudos?". Deus conhece também os silêncios abissais, e Jó é um testemunho atônito e gritante disso.
Martini soube apresentar tanto o Deus glorioso do Sinai e da Páscoa, mas – também e sobretudo com o seu episódio final – até mesmo o Deus mudo do Calvário que não responde nem ao Filho. Ele indicou aos homens e às mulheres de boa vontade o Deus da palavra luminosa e o Deus silencioso que muitos acreditam estar ausente ou inexistente, enquanto ele é só um mistério altíssimo a ser descoberto.


Martini, o homem que podia ser papa. Artigo de Marco Politi

Paladino dos direitos civis, Martini não dividia o mundo entre crentes e não crentes, mas sim entre pensantes e não pensantes. Irritava a hierarquia eclesiástica com as suas opiniões sobre o testamento biológico, as relações homossexuais, a fecundação artificial. Antes, Wojtyla o lançou, depois o redimensionou: não lhe agradava essa tranquila carga reformista.
A opinião é do jornalista italiano Marco Politi, especialista em assuntos eclesiais, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O homem, que poderia ter se tornado papa, não dividia o mundo em crentes e não crentes, mas sim entre pensantes e não pensantes. Ele tinha o dom da inteligência, da fé, da humildade e a  coragem da busca. Enraizado na Bíblia e ao mesmo tempo sensível aos valores da modernidade, ele exortava os fiéis a se medir com a "liberdade individual e social, a democracia, a autonomia da busca como liberdade da inteligência individual". Houve um tempo, contava, em que havia sonhado com uma "Igreja na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo. Uma Igreja que dá espaço às pessoas que pensam mais além. Uma Igreja que dá coragem, especialmente a quem se sente pequeno ou pecador. Uma Igreja jovem".
Hoje, confessava depois de ter ultrapassados os 80 anos, "eu não tenho mais esses sonhos... Decidi rezar pela Igreja". A Deus, pediu para não ser deixado sozinho. A Jesus, gostaria de perguntar no momento da passagem "se ele me ama, apesar das minhas fraquezas e dos meus erros e se virá me buscar na morte, se me acolherá".
Ele morreu recusando a obstinação terapêutica, rejeitando a ideia de um corpo mantido artificialmente em existência pela tecnologia. Por outro lado, com o cirurgião católico e parlamentar do Partido Democrático Ignazio Marino, o cardeal havia abordado o tema delicado da morte não procurada, mas aceita naturalmente como rejeição do domínio da máquina sobre o corpo. Casos como o de Welby, advertiu, serão cada vez mais frequentes e será preciso refletir sobre como tratá-los.
Quer se tratasse do testamento biológico ou da compreensão sobre as relações homossexuais – ele admitia o "valor de uma amizade duradoura e fiel entre duas pessoas do mesmo sexo" –, quer se tratasse de uma nova abordagem à inseminação artificial ou do papel das mulheres na Igreja ou dos casais de fato ou da colegialidade como expressão da participação dos bispos do mundo no governo da Igreja universal, Martini irritava frequentemente a hierarquia oficial com as suas intervenções pensadas e, portanto, incômodas.
Ele poderia ter se tornado pontífice pelas suas qualidades e pelo vasto crédito de que gozava no mundo católico e entre as Igrejas cristãs. Um crédito que ia muito além das fronteiras confessionais, favorecido pela grande estima que também tinham por ele judeus e muçulmanos e não crentes. Mas no conclave de 2005 Martini chegou já curvado pelo Parkinson, e a Igreja Católica não podia se permitir dois pontífices doentes seguidos. Em todo caso, Martini parecia ser reformista demais para um conclave, que estava se orientando em uma linha de defesa identitária do catolicismo. Não teria tido os votos necessários. Assim, no fim, convidou seus seguidores a votar em Joseph Ratzinger.
Homem da Igreja, o purpurado foi, de maneira "secular", extremamente participante das convulsões italianas. Politicamente, nos anos do berlusconismo triunfante, não se poderá esquecer a sua tácita mas clara contraposição com a linha de ativismo político do cardeal Camillo Ruini, então presidente da Conferência dos Bispos da Itália. Ele não gostava do clericalismo como cobertura para facções políticas.
O arcebispo de Milão tinha o costume de intervir periodicamente e com grande insistência sobre os temas da legalidade, da justiça e da democracia ameaçada pelos interesses privados, perorando a causa de uma política para o bem comum. Contra o leguismo insolente [referente ao movimento da Liga Norte], ele falava de respeito e de acolhida aos imigrantes. Contra a tendência de despedaçar o país, ele falava de solidariedade. Os seus discursos para a festa de Santo Ambrósio eram o sinal de alarme contra a degradação do país. Do "Mãos Limpas", evento que explodiu na sua diocese, ele dizia que havia ensinado que a "desonestidade nunca vale a pena. Antes ou depois, chega-se a uma explosão. Todas as formas de apropriação do bem público, cobertas ou sutis, não podem durar muito tempo".
João Paulo II o havia lançado, levando o estudioso biblista a assumir, 1979, ao cargo difícil de arcebispo de Milão e fazendo-o cardeal em 1983. João Paulo II o redimensionou. Wojtyla não gostava da tranquila carga reformista de Martini, a quem estimava, no entanto. Wojtyla não aceitava que a visão de Igreja, da qual Martini era tenaz portador, pudesse se tornar um modelo alternativo à sua linha.
Por isso, quando o arcebispo de Milão tornou-se influente demais como presidente do Conselho das Conferências episcopais (católicas) europeias, João Paulo II fez mudar o status da organização, impondo que só o presidente de um episcopado nacional pudesse liderá-la. Assim, Martini teve que deixar o posto em 1993. Mas o cardeal não era personalidade de se desencorajar.
Em 1999 – durante o Sínodo internacional dos bispos convocado por Wojtyla para analisar a Europa após a queda do Muro de Berlim –, o arcebispo de Milão surpreendeu os seus coirmãos evocando um "sonho". O sonho de um novo Concílio, que tivesse a coragem de discutir problemas mais espinhosos: "A eclesiologia de comunhão do Vaticano II", a carência já dramática de sacerdotes, a posição da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, o tema da sexualidade, a disciplina católica do matrimônio, o ecumenismo e as relações com as "Igrejas irmãs da Ortodoxia".
Uma agenda crucial, que o Papa Wojtyla e o Papa Ratzinger, hoje, nunca quiseram enfrentar.
Alguns anos antes, referindo-se expressamente à encíclica de João Paulo II Ut unum sint sobre o repensamento da função dos pontífices, o cardeal havia proposto que se "remodelasse" em sentido ecumênico o primado papal à luz das autonomias das diversas Igrejas cristãs. "Poder-se-ia – disse-me em uma conversa – iniciar de um modo simples. Com uma consulta de todas as comunidades cristãs convocadas pelo papa... Uma mesa em que se abordem os grandes problemas da humanidade para encontrar uma linha de ação a serviço do ser humano".
Martini era uma mina de ideias reformadoras. Ou, melhor, tinha a coragem de expressar o que muitos no mundo católico pensam às escondidas ou envolvem em escritos especializados. Mas ele não era um exibicionista do reformismo. Estava profundamente convicto do valor essencial da oração, do estudo, da meditação. Em Milão, criou a "Cátedra dos Não Crentes" para dialogar com a cultura contemporânea, mas também instituiu um dia da semana na catedral dedicado ao "silêncio", para que os jovens da era da conversa à toa aprendessem a mergulhar em seu próprio íntimo. Via mestra para encontrar Deus
Dos seus muitos escritos e discursos, permanece viva a ideia de um Concílio fecundo de novas reformas. E que o fato cristão não se mede no seu sucesso de massa, mas sim na capacidade de testemunho. "A pergunta é: vivemos autenticamente o Evangelho?". Pensativamente, ele gostava de sublinhar: "Você não pode tornar Deus católico... Certamente, as pessoas precisam de regras e de limites... Mas Deus tem o coração sempre maior".


 
Concílio Vaticano III: um sonho de Martini
Ele sonhava com um Concílio Vaticano III, porque estava convencido de que a Igreja Católica precisava de profundas reformas. Mas o cardeal Carlo Maria Martini morreu nessa sexta-feira não só sem ter visto essa nova cúpula, mas também assistindo à progressiva demolição de todas aquelas instâncias de renovação avançadas pelo Concílio Vaticano II, há 50 anos, gradual e inexoravelmente apagadas ou redimensionadas pelo Papa Wojtyla e pelo Papa Ratzinger, principais defensores da chamada "hermenêutica da continuidade", ou seja, de uma interpretação do Concílio no sinal da absoluta continuidade com a tradição e o magistério da Igreja.
A reportagem é de Luca Kocci, publicada no jornal Il Manifesto, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Existe a "necessidade de um debate colegial entre todos os bispos" – e já a expressão "debate colegial" faria ouriçar a pele da Cúria vaticana – sobre uma série de importantes "nós" que "reaparecem periodicamente como pontos quentes no caminho das Igrejas", dissera Martini, no Sínodo dos bispos europeus em 1999, elencando também alguns desses pontos doídos: a participação democrática na vida da Igreja, os leigos, o papel das mulheres na sociedade e na Igreja, "a sexualidade", a "disciplina do matrimônio", a "relação entre democracia e valores e entre leis civis e lei moral".
Temas que, pedia Martini, devem "ser abordados com liberdade, no pleno exercício da colegialidade episcopal". A resposta da Igreja de Wojtyla e de Ruini, antes, e de Ratzinger depois, no entanto, foi outra: a codificação dos "valores inegociáveis", sobre os quais não se discute. Sepultado assim não só o "sonho" de Martini de um Concílio Vaticano III, mas também aquele pouco que restava, e que resta, do Concílio Vaticano II.
Nascido em Turim no dia 15 de fevereiro de 1927, muito jovem entrou na Companhia de Jesus (os jesuítas) e foi ordenado padre em 1952. Estudou teologia, depois Sagrada Escritura no prestigioso Pontifício Instituto Bíblico de Roma, onde lecionou e se tornou reitor. Em 1978, poucas semanas antes de morrer, Paulo VI nomeou-o reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana, a instituição romana dirigida pelos jesuítas. Mas logo deixou Roma: no fim de 1979, o Papa Wojtyla o escolheu como arcebispo de Milão, diocese que lideraria ininterruptamente até 2002, quando se transferiu para Jerusalém.
E em Milão, a maior diocese da Europa, tornou-se uma figura de primeiro plano da Igreja, italiana e não só. Levou adiante atividades de caráter espiritual, como as leituras bíblicas públicas na catedral que atraem milhares de pessoas, abertas também aos ateus e aos agnósticos – porque, dizia, "a verdadeira distinção não deve ser feita entre crentes e não crentes, mas sim entre pensantes e não pensantes" –, como a Cátedra dos Não Crentes, encontros de debate sobre vários temas entre católicos e seculares.
Justamente porque se creditava como homem do diálogo, em meados dos anos 1980, os militantes dos Comitês Comunistas Revolucionários, grupo considerado contíguo às Brigadas Vermelhas, entregam as armas ao arcebispo, também para solicitar uma mediação da Igreja para o fim da luta armada.
No campo social, mais de uma vez Martini tomou posição pela defesa dos direitos dos pobres e dos marginalizados, particularmente dos presos e dos imigrantes, atraindo, nos anos 1990, fortes críticas dos membros da Liga Norte em ascensão, que também conquistaram a prefeitura de Milão com Marco Formentini. E no plano político ele defendeu a chamada "opção religiosa" da Ação Católica e de outras associações que tentavam despedaçar o dogma da unidade política dos católicos na Democrata Cristã (DC) e que recusavam o papel de reservatório de votos para a DC, suscitando as iras do Comunhão e Libertação e do mundo católico mais conservador.
Candidato da frente progressista (minoritária) no conclave que, em 2005, elegeu, ao invés, o Papa Ratzinger (até porque o Parkinson que atingira Martini enfraqueceu a sua candidatura), nos últimos anos Martini muitas vezes tomou a palavra a partir das colunas do jornal Corriere della Sera e do L'Espresso, juntamente com Ignazio Marino, sobre os temas "eticamente sensíveis" – do início da vida à inseminação artificial, da homossexualidade ao fim da vida –, principalmente em parcial discordância com o magistério oficial.
A escolha final de recusar a obstinação terapêutica foi a última manifestação disso.

Martini, um homem que sabia ouvir. Artigo de Elena Loewenthal
O sentido do diálogo não era, para o cardeal Martini, apenas uma missão eclesial. Era verdadeiramente o seu modo de ser, de viver junto com os outros.
A opinião é da escritora italiana e estudiosa do judaísmo Elena Loewenthal, em artigo publicado no jornal La Stampa, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Ele encarnava a Igreja do diálogo, uma fé aberta à escuta do "outro" em um sentido lato, mas nunca anônimo. À sua Cátedra dos Não Crentes, chegaram ao longo dos anos as vozes mais diversas e dissonantes, em uma alternância em torno aos grandes temas da existência. Mais do que um selo de autoridade, essa cátedra era uma ocasião de encontro com um aspecto particular e muito pregnante da sua personalidade.
Porque o sentido do diálogo não era, para o cardeal Martini, apenas uma missão eclesial. Era verdadeiramente o seu modo de ser, de viver junto com os outros. Deve ter sido mérito também da sua extraordinária formação, mas, encontrando-o pessoalmente, essa sua propensão se destacava como algo conatural, inerente a ele. Era a capacidade de "extrair" do outro, através da palavra, mas também e talvez sobretudo do silêncio da escuta, aquelas verdades que se guarda dentro não para escondê-las, mas porque não se encontra um modo para expressá-las. Uma espécie de maiêutica nem secular nem sacerdotal; humana, ao contrário. Os encontros públicos da Cátedra dos Não Crentes eram precedidos por colóquios privados que tinham esse inesquecível sabor socrático.
O cardeal escutava você, fazia tacitamente ordem nos seus pensamentos, colocava perguntas sem a ansiedade de ouvir respostas. E era um mestre exigente: cada palavra dita a ele aspirava ao sentido, não era lançada no ar como vaidade das vaidades, sopro inútil. Nisso estava a sua natureza de homem de diálogo: no encontro de palavras entre duas pessoas, na troca de experiências, competências e verdades.
E se hoje muitos põem em causa as suas posições "laicas" (termo estranho, ainda a ser definido totalmente e aqui mais do que nunca paradoxal) sobre o fim da vida, sobre a obstinação terapêutica e sobre a liberdade de decidir por si mesmo, é igualmente verdade que a sua laicidade – não, melhor chamá-la de humanidade – se expressava acima de tudo no exercício do diálogo. Que se fazia inesquecível magistério no uso calibrado da palavra, na tenaz capacidade de escuta, no fato de exigir do seu interlocutor de uma franqueza espiritual e intelectual da qual, antes de conhecê-lo, não nos acreditávamos capazes.

A borda do manto. Artigo de Gianni Riotta
Para a Igreja Católica, o paradigma de Martini é formidável: não encerrar-se em um rancoroso "não" ao mundo moderno, nem aceitá-lo por medo de que ele se afaste ou abrandá-lo, permutando "espaços próprios" com o poder.
A opinião é do jornalista italiano e editorialista do jornal La Stampa, 01-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Diante do cardeal Martini, até mesmo o mais cético dos seculares recebia o impacto do carisma, da figura, alta, magra, hierática, os olhos severos, as mãos unidas na concentração: até mesmo quando a doença o encerrou em espasmo, elas permaneceram belíssimas.
Não havia em Martini um vício populista, ele se apresentava como Príncipe da Igreja, sucessor de Santo Ambrósio e de São Carlos, mas a realeza sagrada não afastava o interlocutor, o impunha a olhar para o alto. Não requeria atenção por vaidade, embora justificada pela fama, saber, sucesso até mesmo além da Igreja Católica. Havia severidade, o rigor dos dias de estudo, prolongadas até a temporada passada na Terra Santa depois dos anos em Milão, à retirada à casa de repouso em Gallarate, com a doença minando a saúde, com a vontade de continuar o diálogo com os fiéis através do jornal Corriere della Sera.
A severidade crescia diante do cargo daqueles que ele tinha à frente, não dava descontos ao poder; quando um livro do Papa Ratzinger não lhe pareceu de padrões teológicos adequados ele o disse. Com os humildes, as crianças, ele se amolecia, mas a todos Martini assinalava, com postura moral e física, a estrada a percorrer rumo àquela ele considerava "a salvação".
Na vulgata da mídia, o biblista Martini era "progressista", em oposição ao "conservador" João Paulo II, ao "político" cardeal Ruini, ao "ex-progressista da revista Communio" Ratzinger. Eu não acredito que alguém jamais tenha ousado pessoalmente propor a Martini essas caricaturas, das quais ele estava dolorosamente consciente, embora ignorando-as, assim como ignorava o zumbido fofoqueiro dos salões milaneses, que o reduzia a "teólogo" não observador dos deveres "pastorais".
Os seus deveres, ao invés, culminaram no dia 31 de julho de 1991, 500 anos após o nascimento de Santo Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas aos quais Martini pertencia desde 1952, na Carta Pastoral Il lembo del mantello, que se tornou, com a Cátedra dos Não Crentes para o diálogo entre pessoas de fé e sem fé, símbolo dos anos do cardeal na metrópole lombarda, 1979-2002: "Faze, ó Senhor, / com que as antenas e os campanários / saibam dialogar entre si. / Ajuda a tua Igreja / a ser o povo do diálogo, / capaz de dizer e de praticar / a comunicação em seu interior e com todos. / Faze com que saibamos nos educar e educar / a um uso livre e libertador / da mídia, para reconhecer e valorizar / profeticamente neles a borda do manto / do Filho teu, feito homem por nós....".
Incomodava-o o rótulo de "progressista", exaltava-se na exegese da Bíblia, foi o único estudioso católico a trabalhar no New Greek Testament. Em Il lembo del Mantello, Martini lembra que "notícia" não é mercadoria, é comunidade, deve nos tornar irmãos, não inimigos. Propondo o diálogo "aos campanários e às antenas", o cardeal não iguala Igreja e meios de comunicação. Ele pede que as mídias não desprezem a pessoa humana, não a tornem "mercadoria". Que inspirem confiança, que não semeiem cinismo, que ouçam as razões dos outros.
Para a Igreja Católica, o paradigma de Martini é mais formidável: não encerrar-se em um rancoroso "não" ao mundo moderno, nem aceitá-lo por medo de que ele se afaste ou abrandá-lo, permutando "espaços próprios" com o poder. Ele estava convencido de que a verdade do Campanário, a Bíblia, era mais profunda do que a da Antena. Mas com força recordava àqueles que trabalham para o Campanário: a sua Verdade é sagrada, mas vocês são falíveis como os vizinhos da Antena. O Campanário não garante salvação; a Antena não garante modernidade.
Eu me aproximei do cardeal Martini em 1993, depois das bombas em Milão, para o programa Milão Itália. Ao vivo na TV, as palavras do cardeal se impõem ao olhar, claro, sem sujeição e narcisismo. Ele não oferecia conforto sentimental, pedia compromisso, consciência. Em 2010, a diocese me pediu novamente para me encontrar com Martini para pensar sobre Internet e mídias sociais. Martini vivia em um ex-seminário dos jesuítas, frequentado quando garoto: agora, reduzidas as vocações e com o aumento dos sacerdotes idosos, é casa de repouso.
A nossa conversa na TV foi a última que Martini gravou: "Na internet, eu encontro os grandes do passado e os esquecidos". Para Martini, as horas da manhã eram as mais duras, antes que os medicamentos desamarrassem os membros contraídos pelo Parkinson. Quando o cardeal apareceu, um pouco mais curvado, a luz cobalto dos olhos era indomável, assim como a mensagem: o fato de na internet haver de tudo deve nos encorajar, e não nos desencorajar, empenhando-se a separar o verdadeiro do falso.
Usar a web, ele me disse, é como entrar "... em uma biblioteca grande, onde é preciso um critério de escolha. Não posso ir à biblioteca e pegar os livros assim por acaso. Eu devo saber o que quero, qual é o caminho que devo seguir, quais são as pessoas que posso ouvir... ". Perguntei-lhe se o Google agora também faz parte da "borda do manto", e ele respondeu: "Sim, certamente, porque o projeto de Deus é um projeto comunicativo, isto é, expandir a comunhão entre as pessoas, e o projeto eterno de Deus também será uma grande comunhão de todos com todos. Portanto, certamente essas mídias se inserem nesse projeto".
Sobre a enciclopédia online Wikipédia, ele falou com ternura: "Eu uso frequentemente a Wikipédia, porque eu me atualizo tentando usar o computador, e por isso vejo mais o lado positivo. Entende-se que se pode usar mal esse fato e, assim, criar uma democracia que não seja uma igualdade de todos, mas sim uma atitude negativa para com alguns. Mas os usos equivocados, sempre possíveis, não diminuem a importância dos usos bons".

E à ansiedade da morte do livro ele respondeu para não confundir entre meio e conteúdo. Os suportes mudam, as Verdades, não: "Estou preocupado com os desvios culturais, porque o livro continua sendo fundamental, muito precioso, por isso é preciso tomá-lo na mão. Eu não estou tão preocupado com o fato de que a Palavra (com maiúsculo) passe também através das diversas mídias. Pois, como diz Platão, a palavra é sobretudo falada, é dita, mas isso não isenta que os livros tenham grande valor".
Depois, ele se levantou para se retirar e, enquanto eu o agradecia, ele concluiu: "Esperamos que possamos nos rever". Em seguida, se despediu da equipe. Ele não fez sinais evidentes de bênção, mas a sua graça encheu a sala e a nós.

Nenhum comentário:

Boas vindas!

Você é o visitante!