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sábado, 11 de agosto de 2012

A loucura de Deus num profeta da Amazônia!

Artigo da Equipe Itinerante da Amazônia presta a sua homenagem no 4º aniversário da itinerância do companheiro para a casa do Pai.
Há quatro anos falecia Cláudio Perani, padre jesuíta, fundador do CEAS, em Salvador e da Missão da Equipe Itinerante na Amazônia.
Introdução
Dois anos depois da Itinerância Definitiva e Plena do Pe. Cláudio Perani sj (+8/8/2008), Dom Moacyr Grechi, Arcebispo emérito de Porto Velho (RO, Amazônia), comentou com carinho e saudade: “Quanta falta nos faz o amigo Cláudio! Ele nos ajudava a alçar a vista e alargar a mirada mais longe, para discernir nossa missão na Amazônia!”.
Cláudio foi o primeiro superior do Distrito dos Jesuítas da Amazônia (DIA) , criado em 1995 para discernir a missão amazônica “desde dentro”, a partir da Amazônia e do caminhar respeitoso, próximo, paciente e amoroso junto a seus povos, em diálogo com eles. E não mais pensar, discernir e decidir a missão na Amazônia “desde fora”, a partir do litoral ou centro-sul do Brasil, dos grandes centros de decisão ou poderosas corporações dos países hegemônicos. Assim se fez historicamente ao longo do período colonial e até hoje se reproduz em modelos de desenvolvimento fortemente agressivos, marcos legais que ferem a justiça socioambiental, políticas públicas que facilitam a depredação da região e uma violenta agressão aos direitos humanos e cósmicos de seus povos.
Para discernir a missão na Amazônia, “desde dentro”, com seus povos e aliados, Cláudio insistia: “Andem pela amazônica e escutem atentamente o que o povo fala... Participem da vida cotidiana do povo... Anotem e registrem tudo cuidadosamente... Não se preocupem com os resultados; o Espírito irá mostrando o caminho... Coragem! Comecem por onde possam...”
Recentemente a Conferência d@s Religios@s do Brasil (CRB) realizou um importante seminário nacional com o título: “Vida Religiosa: A loucura que Deus escolheu para confundir o mundo”  (1 Cor 1,27)  . Participaram mais de 400 provinciais. Tod@s com o desejo de recuperar essa loucura que Deus escolheu, em nossa vida pessoal e congregacional, na vida de nossas instituições e da própria Igreja. Como recuperar essa loucura que Deus semeou n@s noss@s fundador@s, mártires, profetas e profetizas de todos os tempos? Cláudio foi um desses loucos profetas que Deus escolheu para confundir a lógica do mundo, muitas vezes presente na nossa prática cotidiana, na vida pessoal e de nossas instituições. Ele foi um profeta enlouquecido pela busca apaixonada do Reino e sua Justiça (Mt 6,22); acolheu e semeou o dom da “loucura de Deus” assumindo essa tarefa nas periferias da Pan-Amazônia, atravessando suas fronteiras, geográficas e simbólicas, nos dois sentidos.
Para Cláudio, o missionário tem sempre “um pé dentro e um pé fora”. A missão na Amazônia, e toda missão na perspectiva do Reino, é encarnada e inculturada a partir de seus povos. Toda missão se amassa no bater dos pés no chão sagrado das estradas da vida, com a poeira do caminho e a benção da chuva do céu; nas trilhas da floresta e nos meandros e praias dos rios; nas itinerâncias internas e externas; na partilha do cotidiano da vida com os povos da Amazônia, com @s pobres, excluíd@s e diferentes; no diálogo fraterno e discernimento conjunto com @s de “dentro”; e em diálogo respeitoso e recíproco com @s aliad@s de “fora”.
Perani insistia que a EI deve ter “um pé dentro e um pé fora”: um pé dentro da gente e um pé fora de nós mesmos; um pé nos membros da EI e um pé fora deles, nos outros; um pé na própria cultura e um pé nas outras culturas; um pé na própria experiência religiosa e espiritual, e um pé nas outras experiências religiosas e espirituais; um pé nas nossas congregações e instituições e um pé nas instituições e congregações afins; um pé na inserção e um pé na itinerância; um pé neste lado da fronteira e um pé no outro lado; um pé na margem direita e um pé na esquerda do rio; um pé nos espaços da igreja e outro pé em outros espaços não eclesiais; etc. Sempre um pé dentro e um pé fora...

I. Três perguntas fundamentais no discernimento da Missão da Equipe Itinerante na Amazônia a) Com quem Deus nos convida a comprometer nossa vida em missão na Amazônia?
Nas andanças pela Amazônia escutando seus povos, quatro rostos concretos surgiram: indígenas, ribeirinh@s e as pessoas das periferias urbanas empurradas do interior para as margens das cidades amazônicas; e vinculado intimamente a esses rostos e a seus processos de exclusão está o rosto da Mãe-Terra violentada e depredada na Amazônia. Estes quatro rostos estão intimamente inter-relacionados. Os ribeirinh@s são fruto do encontro, muitas vezes violento, entre viajantes, comerciantes, aventureiros, militares, “soldados da borracha” nordestinos e mulheres indígenas. Todos estes povos tradicionais da Amazônia mantêm uma relação de reciprocidade (não-depredadora) com a Mãe-Terra. E hoje 70% da população amazônica se concentram nas grandes cidades da região. A lógica é perversa: esvaziar o interior da Amazônia empurrando o povo para as periferias das grandes cidades para poder entregá-lo às grandes empresas e corporações para que possam explorar os recursos naturais sem conflito social. Contra esta lógica perversa há que energicamente opor-se. Por tanto, é urgente ajudar a fixar o povo na terra, em seus territórios, com políticas públicas dignas, em favor da vida. Para isso nossa vida em missão, nossas comunidades e obras, nossas instituições devem interiorizar-se, ruralizar-se, “paganizar-se” (voltar para os pagos, zona rural). Sair dos centros urbanos para as margens e periferias das áreas rurais. Sair de Jerusalém para a Galiléia dos gentis.
A pergunta inicial para o discernimento da missão não foi o que vamos fazer na Amazônia. A primeira pergunta foi: com quem Deus nos convida a comprometer nossa vida em missão na Amazônia? A primeira atitude foi andar pela Amazônia e escutar seus povos, descer ao encontro do povo e escutá-lo, como o próprio Deus do Êxodo fez (Ex 2,23-25). A partir dos gritos da Amazônia e junto com seus povos vamos discernir e caminhar no êxodo de libertação rumo à Terra sem Males, Yvy Marane´y (em guarani).

b) Onde estão esses rostos, as feridas mais abertas e a vida mais ameaçada?Esses rostos se encontram além das nossas fronteiras (“um pé fora”) e nas fronteiras geográficas e simbólicas da Amazônia, aonde os poderes constituídos dos estados-nação não chegam ou chegam ineficiente, deixando a porta aberta às máfias: tráfico humano, narcotráfico, exploração de recursos naturais, etc. Por isso, o serviço que a EI presta é inter-fronteiriço, atravessando as fronteiras geográficas e simbólicas da Amazônia nos dois sentidos.

c) Como chegar às fronteiras geográficas e simbólicas, onde as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada?
Sobre esta terceira pergunta, três intuições fundamentais surgiram no discernimento: Itinerância, Inserção e Inter-Institucionalidade.
 II. Principais Componentes ou Dimensões de Serviço do Projeto da Equipe Itinerante
Ao longo destes 14 anos de caminhada (1998-2012), foram cristalizando as intuições proféticas do Cláudio nos seguintes elementos de identidade da EI.
Por um lado, foram discernidos e escolhidos quatro rostos preferenciais dentro do contexto amazônico atual: a) Indígenas; b) Ribeirinhos; c) Povo Marginalizado nas e das periferias urbanas; d) Rosto da Mãe-Terra explorada e depredada.
Nestes rostos, três deles sujeitos históricos, fixamos nossos olhares e aguçamos nossos ouvidos para escutar e sentir seus clamores, sonhos e esperanças, e para caminhar solidariamente a seu lado, na complexa travessia histórica que vive hoje a Amazônia no contexto global. É importante ter em mente que esses quatro rostos estão profundamente inter-relacionados entre si.
Por outro lado, ao longo destes anos, foram perfilando-se melhor as quatro componentes principais ou dimensões de serviço que configuram hoje o projeto da EI e sua missão na Amazônia junto a seus povos:
a) Itinerância; b) Inserção; c) Inter-Institucionalidade; d) Inter-Fronteiriço.

1. Itinerância:
“Andem pela Amazônia e escutem o que o povo fala”.
“Um pé dentro (itinerância interior) e um pé fora (itinerância geográfica)”.
Ir ao encontro do povo; não ficar esperando a que o povo venha... Caminhar com ele lado a lado, nem na frente nem atrás.
Itinerância fala de caminho e caminhada. E caminhar é o processo de passagem de um estado de equilíbrio para outro de desequilíbrio, para logo voltar a reequilibrar-se, e assim sucessivamente. Só podemos avançar se estamos dispostos a desequilibrar-nos e reequilibrar-nos sucessivamente. Quem quer estar continuamente equilibrado na vida, com os dois pés fixos, não poderá avançar e crescer nela. Deus continuamente nos convida a sair da “terra própria” e itinerar rumo à “terra prometida” (Abraão, Gn 12,1). O próprio Deus-Trindade se “desequilibrou” enviando seu Filho Único, encarnando-se em Jesus filho de Maria... E o desequilíbrio divino tem a ver com o amor, com a paixão e compaixão, com a radicalidade, com a loucura-amorosa de Deus: “Pois Deus amou tanto o mundo que enviou seu Filho Único, para que todo aquele que nEle acredite não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Também, por loucura de amor, Ele nos convida a desequilibrar-nos juntos para amar-servir-cuidar com radicalidade, compaixão e paixão, @s ferid@s e crucificad@s deste mundo.
Deus sempre nos convida a itinerar: a sair do conhecido ao desconhecido, do seguro ao inseguro, do estável ao instável, do confortável ao inconfortável, do equilíbrio acomodado para o desequilíbrio desacomodado... Só nesse contínuo sair e itinerar podemos caminhar nas diferentes estradas, trilhas, rios e selvas da vida, no compromisso radical com seu Reino de Vida Abundante (Jo 10,10) para tod@s e para o amanhã, não só para uns pouc@s e para o hoje.
O teólogo José Antonio Pagola, no livro “Jesus, Aproximação histórica”, insiste em que Jesus foi um “Profeta Itinerante” : ”A vida itinerante de Jesus no meio deles [d@s pobres] é símbolo vivo de sua liberdade e de sua fé no Reino de Deus. Ele não vive de um trabalho remunerado; não possui casa nem terra alguma; não precisa responder diante de nenhum arrecadador; não leva consigo moeda alguma com a imagem de César. Abandonou a segurança do sistema para `entrar´ confiadamente no Reino de Deus. Por outro lado, sua vida itinerante a serviço dos pobres deixa claro que o Reino de Deus não tem um centro de poder a partir do qual deva ser controlado. Não é como o Império, (...), nem como a religião judaica, vigiada a partir do templo de Jerusalém pelas elites sacerdotais. O Reino de Deus vai se gestando ali onde ocorrem coisas boas para os pobres.”
O serviço itinerante não é independente ou isolado dos outros serviços importantes e necessários para o bom desenvolvimento da missão. A itinerância é compreendida como um serviço complementário aos outros mais institucionais e inseridos da missão. Cada um destes contribui com sua especificidade à missão do Corpo que tem Cristo por cabeça (cf. 1 Cor 12).
a) O serviço institucional contribui com aspetos mais vinculados à estabilidade e continuidade da missão, nos processos de transformação de estruturas e construção dos valores do Reino e sua Justiça social e ambiental.
b) O serviço de inserção é sinal da proximidade carinhosa de Deus e de sua encarnação amorosa no meio de seus filh@s predilet@s, @s pobres e excluíd@s. A inserção é uma forma concreta de responder ao chamado de Deus que nos convida a encarnar-nos com Ele onde as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada; a fazer-nos próxim@s d@s jogad@s à beira da estrada (Lc 10,25-37); a carregar Sua Cruz com @s crucificad@s da terra, para com Ele e com el@s resuscitar à vida plena.
c) O serviço itinerante contribui com os processos de conectividade e inclusão. Conectividade entre os distintos “membros do corpo” (1 Cor 12). A itinerância é como o sangue que percorre todos os membros do corpo. Serviço de inter-relação entre as diferentes instituições e inserções. Por outro lado, a itinerância ajuda na inclusão daquelas pessoas e realidades que ficam de fora dos serviços mais institucionais e aonde não chegam os mais fixos e inseridos. Ela permite incluir @s que estão “fora”, do outro lado das fronteiras, geográficas e simbólicas, que ainda não estão ainda incluídos. A itinerância é o que propõe a parábola da “ovelha perdida” (Lc, 15,3-7): “deixou as noventa e nove e foi atrás da ovelha perdida”. Parábola que em nossos dias teríamos que reinterpretar: “deixou uma que estava dentro e foi atrás das noventa e nove que estavam fora”. A itinerância é um convite a ter “um pé dentro e um pé fora”, aonde há maior necessidade...
 Esses três serviços à missão estão profundamente articulados entre si a favor da vida, como “membros de um mesmo corpo que tem Cristo por cabeça” (1 Cor 12):
a) A partir da Teologia Trinitária iluminamos estas três dimensões do serviço à missão: Deus Pai – Serviço Institucional; Deus Filho – Serviço de Inserção (princípio encarnatório); Deus Espírito Santo – Serviço de Itinerância. O mistério da Trindade nos convida a contemplar as “Três Pessoas Divinas” em “Um só Deus”; unidade na diversidade, não na uniformidade. Assim também compreendemos em estreita relação complementária essas três dimensões de serviço à missão.
b) A partir da Teologia Batismal todo cristão pelo batismo é chamado a ser Sacerdote-Profeta-Rei. O serviço do Rei, organização e governo, é mais identificado com a dimensão institucional da missão. O serviço do Sacerdote – segundo o sacerdócio de Cristo na carta aos Hebreus – é trazer presente o Amor Encarnado, salvífico e libertador de Deus no meio dos pobres, onde as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada, junto aos crucificados deste mundo; esta é a dimensão missionária da inserção no meio dos mais pobres e excluídos. O serviço do Profeta é a denúncia de tudo aquilo que mata a vida e o anúncio do projeto de Vida Abundante que Deus quer para tod@s; o profeta busca a inclusão dos excluídos deste mundo. Esta dimensão de inclusão, anúncio e denúncia, de conectividade é realizada pela itinerância. Também esses três serviços (sacerdotal, profético e real) estão intimamente relacionados e são complementários na missão do Reino.
c) A partir da Teologia da Vida Religiosa, os três votos se identificam respectivamente com estas três dimensões de serviço à missão. O voto de obediência com a dimensão mais institucional; o voto de pobreza com a dimensão mais inserida; e por fim, o voto de castidade com a dimensão de itinerância, ter um coração livre para irmanar, fazer-nos irmãos e irmãs todos os seres da Criação no projeto do Reinado do Deus da Vida. Também os três votos estão intimamente interligados e são complementários entre si.
A leveza institucional para a missão tem muito a ver com o equilíbrio e a relação entre estas três dimensões de serviço missionário dentro de nossos corpos institucionais. Hoje em dia esta leveza para a missão é muito procurada por nossas congregações, instituições e também pela própria igreja amazônica: “A Igreja se faz carne e arma sua tenda na Amazônia” (CNBB, Encontro de Manaus, 1997) . Este foi o título do documento dos bispos dos regionais amazônicos da CNBB onde refletiram sobre a necessidade de uma igreja mais encarnada nas realidades amazônicas e com estruturas leves e móveis, igreja de tendas, tapiris  e “acampamentos”.
Se priorizarmos os serviços mais institucionais, destinando a maior parte dos recursos humanos, materiais e econômicos a eles – em prejuízo dos outros serviços mais inseridos e itinerantes –, não nos queixemos depois de que nossas congregações ou instituições sejam pesadas e as pessoas que nelas vivem e trabalham se sintam sobrecarregadas, sem vida e sem espírito. Estruturas pesadas geram pessoas pesadas; estruturas leves geram pessoas leves. A leveza institucional para a missão depende do equilíbrio e a relação entre os recursos humanos, econômicos e materiais destinados a cada um dos três serviços institucionais, inseridos e itinerantes.
Itinerância Geográfica e Itinerância Interior. Não há itinerância geográfica sem itinerância interior. A itinerância verdadeira na travessia da vida tem estas duas dimensões inseparáveis: interior e exterior. Não se da uma verdadeira itinerância geográfica e exterior sem um processo profundo de itinerância simbólica e interior em distintos níveis: pessoal, grupal, institucional e interinstitucional. Quem não está disposto a viver esta itinerância interior, suas itinerâncias geográficas ficarão superficiais, num “turismo descomprometido”, que não provoca transformações profundas de conversão, nem nas próprias pessoas que itineram, nem nos sujeitos e nem nas realidades que encontram nas itinerâncias da vida.
2. Inserção:“Participem da vida cotidiana do povo”.
“Um pé em casa e um pé na casa do vizinho”;
“Um pé na itinerância e um pé na inserção”.
Inicialmente Itinerância e Inserção pareceriam conceitos contrapostos e excludentes: ou se vive inserido ou se vive itinerante... Juntar estes dois componentes parecia até impossível. Pois essa é outra sadia e criativa tensão que a EI assumiu nessa lógica dialética de “um pé dentro e um pé fora”. “Um pé na inserção e um pé na itinerância”. Sem renunciar ao serviço itinerante, a EI tenta viver dois níveis do serviço de inserção: Viver na Comunidade Itinerante (CI) inserida e prestar um serviço missionário itinerante também inserido, de comunidade em comunidade. Estes dois níveis de inserção respondem a essa intuição fundamental do Cláudio: “participem da vida cotidiana do povo”.
Durante os dois primeiros anos da EI (1998-1999), os membros viviam nas comunidades institucionais e se encontravam para partilhar as viagens, refletir, rezar e discernir o projeto, e para preparar as novas itinerâncias e assessorias que faziam, em duplas ou trios, pelas diversas regiões do interior da Amazônia ou pelas periferias urbanas de algumas cidades (Manaus, Parintins, Maués, etc.). Nos primeiros anos de caminhada, foram discernindo o lugar desde onde sentiam que o Senhor lhes convidava a inserir-se e desde aí itinerar pela Amazônia... Em fevereiro de 2000, sete pessoas de quatro instituições diferentes iniciaram a primeira Comunidade Itinerante (CI), organizada em três casas palafitas no igarapé do Franco, bairro Vila da Prata, Manaus (AM). Quatro pessoas daquele grupo inicial vinham de fortes e longas experiências de inserção no mundo das periferias urbanas, rural ou com comunidades indígenas. O Pe. Cláudio Perani sj apoiou com firmeza o discernimento e decisão de criar a CI. Ele só perguntou: “Vocês têm discernido bem?” E com sabedoria insistia na importância de ter “um pé na inserção e um pé na itinerância”.
Quatro anos depois, março/2004, teve início o segundo núcleo da EI na tríplice fronteira amazônica de Brasil-Colômbia-Peru, no alto rio Solimões ou Amazonas. Discerniram e decidiram criar a segunda CI inserida no bairro de palafitas “La Unión”, situado no igarapé Santo Antônio que faz divisa entre a cidade colombiana de Letícia e a cidade brasileira de Tabatinga (AM). A intuição foi interessante: situar a CI inserida no lado colombiano onde se fala espanhol, e o escritório do núcleo do lado brasileiro de fala portuguesa. Assim, os próprios membros do núcleo experimentam essa dinâmica inter-fronteiriça de mobilidade humana.
Por último, no ano 2008 abriu-se o terceiro núcleo da EI com base em Boa Vista, Roraima, perto das fronteiras de Brasil com Venezuela e Guiana. Em dezembro de 2009 Dom Roque Paloschi, bispo da Diocese de Roraima, emprestou de forma gratuita uma casa simples, não inserida, para moradia da CI desse novo núcleo.
Assim, na experiência da EI, a Comunidade Itinerante Inserida é um elemento essencial que configura o projeto e lhe dá uma particular característica. Manter esta articulação e sadia tensão entre inserção e itinerância, entre comunidade inserida (“um pé na inserção...”) e missão itinerante (“... e um pé na itinerância”) é um elemento constitutivo da identidade da EI. Contudo, já foi claro nos primeiros anos da EI que morar nas Comunidades Itinerantes Inseridas era uma opção livre das pessoas que integravam o projeto. Assim pode-se fazer parte da missão da EI sem ter que morar numa de suas comunidades inseridas, seja por razões pessoais ou institucionais.
Outro nível fundamental de inserção da EI é o modo inserido de viver a missão: “de comunidade em comunidade”; viajando sempre que possível com os meios de transporte que usam as comunidades; morando com as famílias, comendo e bebendo o que eles nos oferecem; pescando, caçando e ajudando nos trabalhos da casa e da comunidade; rezando, rindo, chorando, celebrando e partilhando a sua vida cotidiana. Nessa partilha de vida, da muita alegria escutar: “Que bom que vocês estão aqui sem pressa!” “Que bom que gostam de nossa comida!” “Voltem sempre!”
Por opção, a equipe não tem transporte próprio. Assim nos obrigamos a ter que depender dos outros em alguma coisa... Se quando realizamos uma missão, em nada dependemos dos outros, mau sinal... Em algo temos que ser inter-dependentes, só assim a relação missionária será respeitosa, recíproca entre sujeitos. É fundamental que todos partilhemos nossa pobreza, colocando cada um em comum, complementariamente, seu ser e ter... Caminhando lado a lado, nem à frente nem atrás... Só assim poderemos realizar a missão comum à que Deus nos chama e envia.

3. Inter-Institucionalidade: A nossa missão comum é tão importante quanto a minha missão pessoal ou institucional.
“Um pé na minha instituição e um pé nas instituições dos outros”.
Se frente aos grandes desafios da missão hoje, todos reconhecemos que sozinhos não podemos chegar porque não temos recursos humanos, nem materiais, nem econômicos suficientes, há duas possibilidades: Ou Deus se esqueceu de seus filhos e filhas mais crucificad@s, onde as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada, ou Deus nos pede trabalhar de outro modo: somar para chegarmos juntos onde sozinho ninguém consegue chegar! Porém, devemos somar não só porque não temos recursos frente aos grandes desafios amazônicos; devemos juntar-nos, sobretudo, porque a visão e missão ficam mais “divina”, mais trinitária, mais complementária, mais profética frente a um mundo fragmentado e individualista.
A pergunta é: Estamos abert@s pessoal, congregacional e interinstitucionalmente a deixar-nos fecundar por Deus neste caminho do “INTER”?
O apóstolo Paulo, a partir de sua experiência pessoal nos diz: “Quando sou fraco é então que sou forte” (2Cor 12,10). É na nossa fraqueza pessoal e institucional que se manifesta a fortaleza de Deus. Só quando reconhecemos humildemente que sozinhos não podemos, nem pessoal nem institucionalmente, Deus pode fazer o milagre de fecundar-nos e fortalecer-nos criativamente no encontro com os outros. Quando somos ou nos consideramos poderosos (pessoal ou institucionalmente), nem Deus consegue entrar e fazer o milagre. A inter-institucionalidade na missão requer muita humildade e abertura, pessoal e institucional. E a verdadeira humildade nos abre à criatividade que nos fecunda no encontro com @s outr@s.
Os fundamentos da inter-congregacionalidade e inter-institucionalidade na missão os encontramos na própria teologia Trinitária e na Cristologia Paulina. Fomos “criados a imagem e semelhança de Deus” (cf. Gn 1,26-27). O próprio Deus-Trindade nos cria a imagem e semelhança dEle, unidade divina na diversidade de Pessoas. Somos seres relacionais. Crescemos e nos desenvolvemos na relação com nós mesmos, com @s outr@s “diferentes” e com o “Outro”...
Paulo lembra que “somos membros de um mesmo corpo que tem a Cristo por cabeça”  (1 Cor 12), e que todos os membros são necessários e importantes para a vida e missão do corpo.
A Inter-Congregacionalidade e Inter-Institucionalidade é um convite a partilhar nossa pobreza, partilhar nossos recursos (humanos, econômicos e materiais), o que somos e temos. Fomos chamados a partilhar o que somos e temos na nossa vida em missão: “Ele chamou @s que quis para estar com Ele e enviá-l@s em missão” (cf. Mc 3,13-15).
 Assim, a EI é um espaço inter-institucional de serviços às comunidades, igrejas, organizações, movimentos, grupos e povos da Amazônia. Não é uma outra “congregação” ou uma Organização Não Governamental (ONG), nem uma instituição juridicamente constituída. A EI não tem personalidade jurídica própria, e não quer ter, para poder ensaiar novas formas organizativas, mais leves e que lhe permitam ser “invisível” (juridicamente falando) para atravessar as fronteiras. Ela não tem identidade jurídica própria, porque já tem e aproveita de toda a força interinstitucional das organizações que somam na proposta. A leveza institucional da EI se da graças ao compromisso interinstitucional das organizações membros. Sem as congregações, instituições e grupos que apoiam e enviam recursos humanos, econômicos e materiais, a EI não existiria. A EI é um espaço inter-institucional de serviços missionários que só existe porque existem congregações, instituições e grupos que decidem somar corresponsavelmente numa mesma missão.
As pessoas da EI são enviadas por uma instituição, congregação ou grupo, que também busca os recursos econômicos necessários para sustentá-la e contribuir com o caixa comum da missão, conforme o estipulado no projeto. Se a instituição, congregação ou grupo que envia uma pessoa não tem recursos próprios, deve buscá-los junto a outras agências de cooperação ou grupos de solidariedade.
Para que a Inter-Institucionalidade na missão aconteça todos devem “partilhar sua pobreza”, contribuindo corresponsavelmente com seu grão de areia: Capuchinhos (VIPROCAR), com a sala para a secretaria; CNBB (Norte 1), com a pessoa que colabora na secretaria; Irmãs de Nossa Senhora, com o acompanhamento à secretaria; Jesuítas (BAM), com uma conta bancária ao serviço da EI; Maristas, com a assessoria; etc. Assim, todas as instituições contribuem segundo suas possibilidades: recursos humanos, materiais, econômicos.
A inter-institucionalidade é um modo particular de resposta ao convite feito pelo Senhor a “estar com Ele e ser enviados em missão” (cf. Mc 3,13-15). A Inter-Institucionalidade exige que todos tenham “um pé dentro de sua instituição e um pé fora, nas instituições dos outros”. Também é fundamental que se assuma a missão comum corresponsavelmente, com igual responsabilidade que se abraça a própria missão pessoal ou institucional. “Inter-Institucionalidade: o nosso tão importante quanto o meu”. Só assim a inter-institucionalidade na missão é possível.
Na atualidade a EI está integrada por umas 10 instituições e tem perspectiva da chegada de outras. Também há instituições que vem colaborando nestes anos de distintas formas com a EI.
4. Inter-Fronteiriço:
“Chamad@s a atravessar as fronteiras, geográficas e simbólicas, nos dois sentidos”.  “Um pé neste lado da fronteira (geográfica ou simbólica) e um pé no outro lado”.
O Evangelho de Mateus nos conta que “Jesus obrigou os discípulos a entrar na barca e ir para a outra margem do mar” (Mt 14,22). E que atravessando o próprio Jesus à outra margem do lago, uma mulher siro-fenicia – de cultura, língua e religião diferente à sua – o “converteu”, ajudando-o a entender que o projeto do Pai era para todos e não só para o povo judeu (Mt 15,21-28). Também Paulo faz a mesma experiência: atravessando as fronteiras do mundo judeu descobre que o Espírito de Deus já estava presente e atuante entre os pagãos (helenistas)... Voltando Paulo a Jerusalém, teve que enfrentar Pedro e Tiago que queriam impor aos irmãos helenistas os rituais, costumes e tradições do povo judeu (“povo eleito”) como condição necessária para entrar na comunidade cristã. Paulo insiste em que foi o próprio Espírito de Deus quem escolheu eles e que não tinham que circuncidar-se para entrar na comunidade cristã (cf. At 15).
A história se repete: Deus sempre nos espera e surpreende revelando-se como novidade, como dom e como graça na outra margem, no outro lado da fronteira geográfica ou simbólica, no outro diferente...
Os bispos da América Latina em Aparecida insistem: “Devemos nos formar como discípulos missionários sem fronteiras, dispostos a ir à outra margem” (DAp 376). Depois de 14 anos itinerando pela Amazônia confirmamos que nas fronteiras, geográficas e simbólicas, as feridas estão mais abertas e a vida mais ameaçada. Por isso é importante a indicação da proposta de Aparecida: ”Estabelecer entre as Igrejas [congregações, organizações...]  locais de diversos países sul-americanos que estão na bacia amazônica uma pastoral [missão]  de conjunto, com prioridades diferenciadas, para criar um modelo de desenvolvimento que privilegie os pobres e sirva ao bem comum” (DAp 475, b).
O missionário sempre deve ter um pé dentro, deste lado da fronteira, e um pé fora, do outro lado da fronteira. Somos chamad@s a entrar nas fronteiras onde as feridas da história, da humanidade, da mãe-terra e do cosmos estão mais abertas e a vida mais ameaçada. Atravessar as fronteiras exige risco, despir-nos de nossas “velhas roupas”, esquemas e lógicas; deixar morrer a “humanidade velha” para renascer a “humanidade nova” (cf. Ef 4,17-32); “vinho novo em barris novos!” (Mc 2,22). Esse é o desafio que vivemos na Amazônia, onde somos convidad@s a atravessar nossa “monocultura” de visão e lógica lineal para uma “ecologia de culturas” , com uma enorme diversidade de visões e lógicas mais holísticas, com diversidade de espaço-temporalidades. Só assim é possível captar e compreender as novidades que se encontram do outro lado das fronteiras e que @s outr@s diferentes nos revelam e oferecem.
Porém, não basta atravessar as fronteiras num único sentido. É necessário atravessar as fronteiras, geográficas e simbólicas, nos dois sentidos. Há que “sair” ao outro lado da fronteira e depois voltar a “entrar” trazendo e traduzindo em categorias compreensíveis as novidades encontradas ao outro lado. Somente assim, atravessando as fronteiras nos dois sentidos poderemos avançar, desconstruir os velhos modelos que não dão conta dos tempos em que vivemos, e recriar novos paradigmas que respondam aos grandes desafios que a Amazônia e o mundo nos apresentam hoje.
Na atualidade, a EI está constituída em três núcleos:
1) Núcleo Manaus, capital do Estado de Amazonas, Brasil (1998);
2) Núcleo BraCoPe, em Tabatinga-Leticia, no alto rio Solimões, na tríplice fronteira amazônica (2004);
3) Núcleo BraVeGui, em Boa Vista, Estado de Roraima, na tríplice fronteira amazônica de Brasil-Venelzuela-Guiana (2008).
Com a chegada de novas pessoas esperamos abrir em 2013 o novo núcleo de BolPeBra (Assis Brasil – Iñapari – San Pedro), na tríplice fronteira amazônica de Brasil (Acre) – Bolívia (Pando) – Peru (Madre de Dios).
Equipe Itinerante: “Abelhas na floresta”
A EI presta um serviço semelhante ao das abelhas na floresta:
1. Polinizar: As abelhas levam o pólen de uma flor para a outra fazendo que todas as árvores e a floresta se fecundem e produzam muitos frutos. Quando em um pomar ou na floresta não há abelhas, ou poucas abelhas, a fecundidade das plantas diminui muito. A EI presta o serviço parecido ao das abelhas: leva o pólen das experiências positivas de umas regiões da Amazônia para outras. Com esse intercâmbio todos vão aprendendo, vão fecundando-se e produzindo mais e melhores frutos.
2. Produzir o mel: Também ás abelhas recolhem os néctares das variadas flores e árvores da floresta. Com essa imensa variedade de néctares elas elaboram o rico e nutritivo mel que a todos encanta e alimenta. A EI vai recolhendo informações e sistematizando as distintas realidades e valiosas experiências que encontra ao longo de suas itinerâncias pelos rios e florestas da Amazônia. Depois devolve estas experiências e informações sistematizadas para que todos possam aproveitar essa enorme diversidade e riqueza amazônica e assim melhorem suas práticas e serviços junto aos povos da região.
2. Ferroar: Por último, as abelhas têm um ferrão para defender-se daqueles que ameaçam a vida. Assim também a EI recolhe informações e denuncia as situações de violência depredadora e injustiça socioambiental que matam a vida da Amazônia e de seus povos. Ela denuncia os projetos de morte, mas também anuncia o Deus da Vida e seu projeto de Vida Abundante (cf. Jo 10,10).
 Para continuar itinerando…
Não queremos concluir este texto, pois a itinerância requer sempre uma abertura ao novo, um “’pé fora” e um “pé dentro” para acolher nas diversasculturas à graça de Deus que se revela a nós de muitas e diferentes formas. Ficam muitas inquietações que nascem deste chão fértil da Amazônia, banhada pelas suas águas, já intuídas por Cláudio e que o teólogo Victor Codina sj reforça e fundamenta:
“Tudo isso indica que vamos rumo a um novo estilo de vocação religiosa, mais reduzida e minoritária, mais mística e profética, mais pobre, com uma maior relação com os leigos e com outras congregações (inter-congregacionalidade), com vocações mais maduras e adultas e não tão jovens, abrindo-se a novas formas de comunidade e de compromissos, com mais fermento do que cimento, e de forma mais significativa, mais carismática e livre, que repense seus trabalhos e ministérios (por exemplo, revisar a paroquialização da vocação religiosa masculina clerical!), mais semelhante às suas origens, que vivam uma aventura evangélica e uma insegurança de nômades, sempre abertos ao sopro do Espírito.”

Obrigad@ Cláudio por teu testemunho de vida em missão “com um pé dentro e outro pé fora”, por tua ousadia e profecia.

Benção da Itinerância
Que o Deus Itinerante:
• Caminhe à tua frente para te guiar, te dar confiança, te mostrar o rumo e te dar esperança na utopia do Reino e sua Justiça!
• Caminhe atrás de ti para te empurrar, te cutucar, te inquietar, te questionar!
• Caminhe ao teu lado para te acompanhar, te alegrar e te fazer sentir Sua presença!
• Caminhe abaixo de ti para te sustentar, te fortalecer e te dar coragem, firmeza e segurança!
• Caminhe sobre ti para te abençoar, te iluminar, te proteger e te defender!
• Caminhe dentro de ti para te fazer sentir Seu perdão, Sua paz, Sua liberdade, Seu carinho e Seu amor sem condições!
O Deus Itinerante, que é Pai, Filho e Espírito Santo te abençoe. Amém!
Notas:
1 Equipe Itinerante (EI): Nasceu inspirado pelo Pe. Cláudio Perani sj em 1998 como uma iniciativa inicial dos Jesuítas da Amazônia. Porém, já neste primeiro ano a experiência foi integrada pela Congregação de Nossa Senhora (CSA) - Intercongregacionalidade.
2 Em 2005 o Distrito dos Jesuítas da Amazônia (DIA) passou a Região Dependente dos Jesuítas da Amazônia Brasileira (BAM).
3 Itaici (SP), Fevereiro de 2012,  http://crbnacional.org.br/homologacao/2012/02/23/a-loucura-de-deus/
4 Pagola, José Antonio: “Jesus, Aproximação Histórica”, Editora Vozes, Petrópolis, 2011. Pag. 109.
5 Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Regionais Amazônicos. Encontro de Manaus, 1997: “A Igreja se faz carne e arma sua tenda na Amazônia” (Cf. Jo 1,14). O Pe. Cláudio Perani sj foi um dos assessores desse importante encontro.
6Tapiri: casa provisória na floresta.
7 Catequista Bene, Comunidade Timbira, São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro, Amazonas, 2003.
8 Equipe Itinerante: “Interinstitucionalidade: O nosso tão importante quanto o meu!”, em Convergência, Conferência d@s Religios@s do Brasil (CRB), Janeiro-Fevereiro/2009, XLIV, n.418.
10 Fernando López sj, Arizete Miranda cns, e Elías López sj: “Equipo Itinerante de la Amazonia: Llamados e enviados a atravesar las `fronteras´ en los dos sentidos”, em Testimonio, Conferre, n. 245, Santiago de Chile, 2011.
11 Os acréscimos entre [...] são nossos.
11 Idem.
12 Boaventura de Souza: “A gramática do tempo”
13 Entrevista ao teólogo Victor Codina sj em IHU. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2659&secao=299
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