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quinta-feira, 24 de julho de 2008

"Tudo para todos"

Diz o Apóstolo Paulo:

Eu que, sendo totalmente livre,
fiz-me escravo de todos para ganhar a todos.
Fiz-me judeu com os judeus a fim de ganhar os judeus.
Com os que vivem sob a Lei
fiz-me como se estivesse submetido a ela,
não o estando, para ganhar os que sob a Lei estão.
Com os que estão fora da Lei
fiz-me como se estivesse fora da Lei,
para os ganhar, não estando eu fora da Lei de Deus,
senão sob a lei de Cristo.
Com os fracos tornei-me fraco, para ganhar os fracos;
fiz-me tudo para todos,
para por todos os meios salvar a alguns.
Faço tudo pelo Evangelho, para ter parte nele.”
(1 Cor 9, 19-23)


Paulo diz: "fiz-me tudo para todos" (1Cor 9,22). A Família Paulina assume esta missão e se decide a anunciar a "Palavra a todos". Por isso, toda realidade interessa à missão paulina hoje. É a razão da proposta desta Análise feita para a CNBB, em junho deste ano.

Análise de Conjuntura

Na primeira parte, é feita uma análise dos avanços na superação do passado colonial latino-americano e a reação dos “donos do poder”.
Ênfase especial é dada ao projeto de reforma tributária que, se aprovado, solapará algumas das principais conquistas da Constituição cidadã, cujo vigésimo aniversário se celebra.
Os assuntos tratados estão neste Sumário:

I . Sinais de superação do passado colonial e ameaça de fome
Bolívia: Unidade ameaçada
Brasil: justiça histórica ou doutrina de segurança nacional?
A fome e a inflação voltam a ameaçar
Volta à direita na Europa e mudança nos EUA?

II . Projeto de Reforma Tributária ameaça conquistas da cidadania

III . Repensar nossas cidades na ótica dos movimentos sociais

IV . Notícias do Congresso Nacional
Qual o futuro do Legislativo?
Divulgação de candidatos-réus em eleições
Projeto de Iniciativa Popular
Aumento do número de vereadores
Câmara aprova alteração no Tribunal do Júri
A nova estratégia dos ruralistas
Trabalho escravo
Governo assina MP que reestrutura dívida rural
Câmara deve votar "MP da Grilagem"
Nossa Senhora Aparecida 'Padroeira' do Brasil
Regulamentação da prática da ortotanásia
Comissão adia votação de Lei da Homofobia
Audiência pública sobre a Reforma Tributária
Anexo
1. Reforma Tributária e suas Implicações para os Direitos Sociais (Seguridade Social).
2. Os efeitos da Reforma sobre o Orçamento da Seguridade Social
3. O que muda na Seguridade com a Reforma.
4. Síntese e Conclusões

Segue o texto.
I . Sinais de superação do passado colonial e ameaça de fome
Multiplicam-se os sinais de uma lenta, mas real, evolução político-social na América do Sul. Exceto Colômbia e Peru, os povos da região elegeram governantes com propostas de mudança na sociedade, especialmente pela luta contra a miséria. Em vários países ouve-se a voz dos povos indígenas em defesa das suas identidades, terras e culturas; contrariando a vontade hegemônica dos EUA, a Nossa América trilha os caminhos da soberania, em busca de formas sociais mais justas e democráticas. Essas boas-notícias para os pobres, porém, contrastam com a volta da inflação – agora de origem externa – a ameaça da fome e o endurecimento dos poderosos.

Mudança no Paraguai
A eleição de Fernando Lugo marca o fim de uma época sombria para o povo paraguaio, desde 1947 sob controle do partido Colorado – sendo 35 anos sob a ditadura do general Stroessner. A vitória de Lugo deve-se tanto ao seu carisma quanto à divisão dos adversários. Candidato independente, Lugo declarou ter deixado o ministério episcopal para ser coerente com sua opção pastoral – e não ideológica – pelo povo. Tudo indica que fará uma política sócio-econômica mais próxima da de Lula ou de Cristina Kirchner do que a de Hugo Chávez ou de Evo Morales. Sua margem de manobra é estreita. Sem maioria no Congresso e eleito por uma coalizão que reúne um arco de partidos que vai da direita à extrema esquerda, terá de buscar o apoio de setores do corrupto e ineficiente partido Colorado ao qual são filiados 95% dos 200.000 servidores públicos.
O país foi governado por políticos corruptos que nunca buscaram o desenvolvimento industrial e de serviços. Mais de 50% da população (6,5 milhões) vive abaixo da linha de pobreza e 35% na miséria absoluta. A população rural, particularmente a indígena, é a mais pobre. O povo luta para sobreviver, e, sem democracia, os movimentos sociais são ainda frágeis inexperientes. Talvez seja a Igreja católica a força mais organizada da sociedade civil e de maior influência moral. Sua participação na construção de um Paraguai renovado, mais justo e democrático pode vir a ser decisiva.
O programa de Lugo dá prioridade às políticas sociais e à reforma agrária. Para isso, necessita do apoio do Mercosul e da solidariedade dos seus vizinhos – Brasil e Argentina. Em decorrência de contratos assinados pelos respectivos governos militares, o Paraguai recebe hoje do Brasil US$307 milhões pela venda de eletricidade de Itaipu e Yaciretá. A preço de mercado, seu valor seria de US$1.800 milhões por ano. Lugo conta com esse dinheiro para suas políticas sociais, o que implica uma renegociação dos contratos. Para fazer reforma agrária redistribuindo terras produtivas, Lugo terá que negociar com 2,5% dos seus proprietários, que se apropriaram de 70% delas. Entre eles estão trezentos mil agricultores brasiguaios que ao longo da fronteira cultivam soja de modo intensivo. Portanto, nos dois pontos centrais do seu programa de governo, Lugo terá que negociar com o Brasil.


Bolívia: Unidade ameaçada
A eleição de Evo Morales em 2005 e, dois anos depois, a aprovação da nova Constituição, representaram o reconhecimento da existência, identidade, culturas, tradições, línguas e religiões dos povos indígenas, em paridade com outros povos, inclusive os colonizadores que ainda dominam e impõem sua cultura, porque a nova Constituição da Bolívia apresenta o conceito de Estado pluri-nacional. A situação política, contudo, é preocupante. A oligarquia branca – formada por empresários, pecuaristas e latifundiários – que controla a vida econômica não aceita perder seus privilégios nem partilhar seu poder. Usando a sabedoria indígena, o presidente Morales manifestou paciência e calma, e procurou o diálogo. Mas em vão. Contrariando os dispositivos legais, seus opositores organizaram um plebiscito autonomista nos quatro departamentos mais ricos, populosos e extensos do país (2/3 da superfície, 1/3 da população e 60% do PIB). O primeiro plebiscito em favor da autonomia ocorreu em abril no departamento de Santa Cruz. Atos semelhantes podem acontecer nos departamentos de Tarija, El Beni e Pando.
Esse movimento separatista tem, no mínimo, a simpatia de forças estrangeiras. A Casa Branca não desistiu de instalar um “Plano Colômbia” na Bolívia, de modo a impedir que a organização crescente dos povos locais ameace seu acesso aos recursos de gás e petróleo. Dada sua posição estratégica, o Brasil poderia ter uma atitude mais firme em defesa da democracia e dos direitos dos povos indígenas. Mas as pressões internas vão no sentido de reforçar a posição de Washington, que considera Lula um aliado para conter o crescimento dos movimentos sociais na América Latina. Diante disso, a resposta corajosa de Evo Morales foi a convocação para, a 10 de agosto, a população do país confirmar ou revogar a sua própria eleição como presidente e a de 8 dos 9 governadores.

Brasil: justiça histórica ou doutrina de segurança nacional?
Tramitam no STF ações que contestam a legalidade da demarcação do território indígena Raposa Serra do Sol, a regularização dos territórios quilombolas e as quotas para afrodescendentes. Esses casos trazem ao debate público a reparação da injustiça histórica perpetrada contra os povos indígenas – expropriados de suas terras – e africanos – escravizados e negociados como se mercadorias fossem – para possibilitar a exploração econômica colonial. E, ao contrário do que se pode pensar, a justiça histórica tem menos a ver com o passado do que com o futuro. Estão em causa novas concepções do país, de soberania e de desenvolvimento.
Há vinte anos sopra no continente um vento favorável à justiça histórica. Desde a Nicarágua, em meados dos anos oitenta do século passado, até à discussão, em curso, da nova Constituição do Equador, têm vindo a consolidar-se a idéia de que a unidade do país reforça-se quando se reconhece a diversidade das culturas dos povos e nações que o constituem. Hoje, quem ameaça a integridade nacional não são os povos indígenas; são as empresas transnacionais e sua sede insaciável de livre acesso aos recurso naturais, com a cumplicidade das oligarquias locais. Não é por acaso que 75% da biodiversidade do planeta se encontra em territórios indígenas ou de afro-descendentes: a relação destes povos com a natureza criou formas de exploração sustentável que podem tornar-se decisivas para a sobrevivência do planeta. É por essa razão que a preservação dessas formas de manejo do território transcende hoje o interesse desses povos. Interessa ao país no seu conjunto e ao mundo.
A pressão dos “donos do poder” contra essa reparação das injustiças históricas não se limita mais às habituais campanhas da mídia a manipular informações e jogar a opinião pública contra povos indígenas e afrodescendentes. Retorna à cena a manifestação de oficiais militares graduados, inclusive um general em posto de comando, invocando um argumento nacionalista eivado da antiga doutrina de segurança nacional. O governo Lula ainda não reagiu contra essas investidas reacionárias, deixando politicamente isolados os movimentos sociais e os setores da sociedade que querem saldar a dívida com os povos sobre os quais foi construída a riqueza do País.

A fome e a inflação voltam a ameaçar
No Haiti, a população protesta contra a alta da cesta básica. O saco de arroz dobrou de preço em uma semana. No país mais pobre da América 80 % da população vive com menos de dois dólares por dia. A produção local foi destruída pela redução das taxas de importação sobre os produtos agrícolas, provocando fenômeno semelhante à guerra da tortilla no México, onde o milho subvencionado dos Estados Unidos arrasou a produção local e induziu centenas de milhares de trabalhadores rurais a migrarem para as cidades e para o país vizinho.
No mercado futuro os preços dos cereais estão subindo e são as populações pobres as mais vulneráveis à ameaça da fome. A recente Cúpula sobre Segurança Alimentar da FAO pouco avançou na solução do problema. Ao encarar o problema como uma crise conjuntural e não como um problema estrutural relacionado ao mercado auto-regulado, ela não mostrou firmeza de que será alcançado o objetivo de reduzir pela metade, até 2015, o número de pessoas (860 milhões) que hoje sofrem fome.
Não pode ser esquecido o impacto do aumento do preço do petróleo. Por um lado, seus derivados – os adubos químicos e defensivos hoje praticamente indispensáveis nas monoculturas – elevaram às alturas os custos de produção. Por outro lado, isso incentivou a procura por agro-combustíveis. Os Estados Unidos, que produzem 40 % do milho mundial e representam praticamente 50 % das exportações mundiais, dominam o mercado. Ora, o uso do milho para fabricar etanol afeta seu preço bem como o preço da soja como alternativa para alimentar o gado. No Brasil, as terras ocupadas por cereais ou pelo gado cedem espaço para a cana-de-açúcar destinada à indústria do etanol. Não é surpresa que o gado e a soja migrem para a Amazônia e o Cerrado, onde “árvore de pé vale menos que árvore no chão”. Assim é que, depois de muito lutar em defesa do meio-ambiente, a ministra Marina Silva saiu do governo, deixando-o mais à vontade para entender-se com as grandes empresas mineradoras (que cobiçam o subsolo de terras indígenas) e os grandes proprietários rurais.
A alta de preços deveria motivar a agricultura local a aumentar sua produção, mas o problema reside justamente no desmonte da agricultura familiar pelo agronegócio aquecido pelo mercado. A paralisação da reforma agrária no Brasil bem ilustra esse fenômeno: a necessidade de exportar produtos primários para cobrir o déficit externo, levou os governos FHC II e Lula I e II a incentivarem o agronegócio e a mineração, o que a partir de 2003 deu ótimos resultados financeiros, mas favoreceu a devastação da Amazônia e do Cerrado. Hoje o Brasil é um exportador de commodities (produtos primários de grande volume e pouco valor agregado) e tem uma moeda muito valorizada (que não é o mesmo que moeda forte) mas seu crescimento econômico não representou desenvolvimento humano: a violência, na cidade e no campo, é um atestado de que, mais uma vez, a economia vai bem mas o povo vai mal.
Diante desse quadro, não foi surpresa que o Banco Central tenha elevado a Taxa Selic de 11,75% para 12,25% ao ano, sinalizando que este não será o último aumento de 2008. Numa perspectiva monetarista estreita, cuja prioridade é a estabilidade da moeda, pouco importa ao sistema financeiro o custo social dessa decisão. Como de hábito, os representantes do setor industrial e do comércio protestam contra o aumento dos juros e pedem o corte de gastos públicos. É sabido que diferentes fatores podem provocar inflação e que o remédio eficaz para um pode não valer para o outro. No caso atual, sendo a inflação no Brasil efeito da alta nos preços internacionais dos alimentos e do petróleo, talvez nenhum desses remédios seja eficaz. Mas os juros altos são sempre bem recebidos por quem aposta no cassino do mercado financeiro.

Volta à direita na Europa e mudança nos EUA?
Desde 2007, as eleições gerais na França, Estônia, Finlândia, Polônia, Bélgica, Dinamarca, Grécia, Irlanda, Espanha e Itália levaram a direita ao poder em todos esses países, salvo na Espanha. Em período de crise e diante de uma forte pressão migratória, a direita põe o acento sobre a proteção identitária e securitária. Envelhecida, a população é alvo fácil dos temores e medos. A aceleração da crise ecológica, o aumento brutal do petróleo e das matérias primas deixa as pessoas mais ansiosas, temendo perder uma vida muito confortável que uma crise financeira e econômica – embora ainda não acentuada – poderia destruir. A população tende a fechar-se sobre si mesma, cada um (pessoas e países) olhando apenas seus interesses imediatos.
Já nos Estados Unidos, a candidatura de Barak Obama ganha força. Caso as expectativas de agravamento da atual crise financeira se confirmem e a economia entre em recessão, é provável que aumente o comparecimento de eleitores nas eleições de novembro, o que favoreceria o candidato que propõe mudanças no rumo do País. Não se deve esperar mudanças estruturais, mas sim o fim da era conservadora inaugurada por D. Reagan.

II . Projeto de Reforma Tributária ameaça conquistas da cidadania
O Projeto de Emenda Constitucional encaminhado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional é, na verdade, o primeiro passo de uma reforma tributária que, em vez de corrigir o maior erro do atual sistema – sua regressividade – o agrava. E o faz por dois caminhos: onerando, mais uma vez, o consumo (e não as grandes fortunas nem os rendimentos elevados) e retirando recursos constitucionais da seguridade social e da educação. O projeto vem sendo escamoteado tanto pela mídia, que pouco se refere ao assunto, quanto pelos partidos políticos – da oposição e da situação – que colocam a responsabilidade fiscal acima da responsabilidade social. O governo restringe o debate aos corredores do Congresso e deseja que a matéria seja votada até o dia 20 de julho. Se não houver um debate honesto e transparente sobre as conseqüências desse novo arranjo tributário, a grande perdedora será a Seguridade Social.
Dada a importância e complexidade do tema, apresentamos em anexo uma nota técnica sobre o assunto, explicando os meandros e subterfúgios do projeto, que se apresenta como incentivador do crescimento econômico nacional.
Aqui chamamos a atenção para informações não divulgadas ao grande público, para fundamentar as atitudes que a CNBB venha a tomar.
É por todos reconhecido que o sistema tributário atual é altamente regressivo, isto é, a proporção dos impostos sobre os ganhos dos contribuintes de menor rendimento é muito maior do que a proporção dos impostos sobre os ganhos totais dos ricos. Isto porque a maior carga tributária é formada pelos impostos indiretos, ou seja, vêm embutidos nos preços das mercadorias e serviços: pouco importa se o comprador é rico ou pobre, pois o preço é o mesmo para todos. Uma Reforma Tributária justa seria a que reduzisse os impostos sobre o consumo e aumentasse os impostos sobre a renda e a propriedade.
Não é disso, porém que se trata. Ao contrário, estima-se que, após a implantação dessa reforma, mais de 80% da arrecadação tributária do país será composta por impostos e contribuições indiretos. Embora pagos inicialmente pelo setor empresarial, estarão incluídos nos preços finais das mercadorias e serviços, transferindo o seu ônus efetivo para o consumidor. É preciso não esquecer que o Imposto Territorial Rural não chega a 0,5% do total dos impostos recolhidos no Brasil, embora ele incida quase que exclusivamente sobre as propriedades pouco produtivas ou improdutivas. Tampouco propõe o atual governo regulamentar o dispositivo constitucional que tributa as grandes fortunas, nem alterar as alíquotas do imposto de renda para pessoas físicas. Ele mantém a predominância da tributação indireta, que penaliza o consumidor de menor renda disponível, enquanto alivia o peso relativo dos impostos para os de maior renda.
As modificações propostas vão atingir principalmente as fontes de financiamento da seguridade social. Como se sabe, o Artigo 195 da Constituição Federal de 1988, ao universalizar o direito à previdência, saúde e assistência social para todos os cidadãos e cidadãs (independentemente de sua contribuição individual), instituiu, ao mesmo tempo, novas fontes de receitas específicas, criando o que veio a ser chamado orçamento da seguridade social (para Saúde, Previdência, Assistência Social e Seguro Desemprego). Os frutos dessas regras são o principal legado distributivo da Constituição de 1988, contribuindo para melhoria de vida e protegendo as pessoas mais vulneráveis, embora ainda esteja longe de sua almejada universalidade.
Se, em nome da desburocratização e dos incentivos ao setor produtivo, essas fontes de receita fossem suprimidas, o princípio da solidariedade no financiamento da Seguridade Social sofreria grave erosão, pois as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social, ao perderem a vinculação de recursos, seriam obrigadas a disputar recursos e enfrentar pressões no âmbito do orçamento fiscal, concorrendo com governadores, prefeitos, lobistas e empresários, todos buscando recursos no orçamento. Qualquer observador sabe que, nesses casos, só por milagre os recursos do orçamento são destinados prioritariamente ao atendimento dos setores mais pobres, porque são menos organizados e quase não têm representantes no Congresso.
Em termos políticos, a mudança é grave. Um dos avanços da Constituição foi a vinculação de recursos, como uma das formas de enfrentar a perversa tradição fiscal do Brasil, que prioriza a acumulação do capital e submete as políticas sociais à lógica econômica. Vincular recursos é assegurar que uma parte da receita seja obrigatoriamente destinada ao financiamento da área social.
O mesmo pode acontecer com a fonte de recursos exclusiva para a educação, se for suprimido o salário-educação, que mantém o Plano de Desenvolvimento da Educação (para o ensino básico) e o Plano Nacional de Educação (que tem por objetivos a elevação global do nível de escolaridade da população e a melhoria da qualidade do ensino em todos os níveis).
Enfim, o atual projeto é muito mais radical do que a DRU (Desvinculação de Receitas da União), que hoje desvia 20% dos recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por conseqüência, a sua utilização em pagamento de juros da dívida (em 2007 ela retirou R$ 38,6 bilhões do Orçamento da Seguridade Social).
Evidentemente, a proposta do governo Lula traz a promessa de compensar essa perda de recursos para a Seguridade Social e a Educação, assegurando-lhes um determinado percentual no orçamento fiscal. Mas isso não impede que, sutilmente, ela desestruture o perfil da Constituição de 1988 no tocante ao Orçamento da Seguridade Social, pois as regras agora propostas são insuficientes para protegerem os direitos sociais básicos na hora de se votar o Orçamento da União.

III . Repensar nossas cidades na ótica dos movimentos sociais
O Núcleo de Estudos sobre os Movimentos Sociais, que presta assessoria à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz, elaborou o texto abaixo reproduzido para compor esta análise de conjuntura.
As eleições municipais que se aproximam e numa reflexão de mais fôlego, pautam o debate sobre que tipo de município queremos. Mais precisamente, dialogando com a tradição da ciência política, que tipo de cidade queremos?
O tema, na ótica, dos movimentos sociais coloca uma série de questionamentos.
Para quem são nossas cidades? Para que servem?
Há uma ideologia dos urbanistas que planejaram as cidades com um centro “clean”, limpo. Só que a tradução prática desta “limpeza, embelezamento, higienização” tem um lado (ou seriam lados?) perverso(s): significam a expulsão, na maioria das vezes truculenta, dos empobrecidos.
Inúmeros exemplos ocorreram (e ocorrem!) nas grandes capitais brasileiras: seja a cassação do direito à moradia dos moradores de rua dos lugares do centro urbano de São Paulo (capital) e Rio de Janeiro ou a criminalização dos catadores de materiais recicláveis e reutilizáveis em Belo Horizonte (MG). Neste último caso, com a substituição (depois de descoberta a “riqueza” que provém da reciclagem do lixo) por terceirizações milionárias sob a hegemonia de grandes empresas de coleta (seguindo o modelo de Ribeirão Preto-SP). Certamente nesse processo há interesse de que as empresas vencedoras contribuam “generosamente” com o caixa das Campanhas eleitorais municipais.
O modelo individualista de desenvolvimento urbano está implodindo as cidades. Nas grandes capitais e nos centros metropolitanos é impossível transitar com veículo próprio. A facilitação do acesso ao crédito para segmentos médios e populares possibilitou um consumo inacreditável com aquisição exponencial de carros populares. O resultado prático foi o colapso da concepção de cidade no Brasil: as cidades não foram feitas para todos(as) transitarem!
E para conter os engarrafamentos, as medidas são repressivas: revezamento de veículos para circulação nas cidades. Não há nenhuma medida estrutural na perspectiva de aprimoramento dos meios de transportes coletivos urbanos. Eles continuam funcionando mal porque se trata de “transporte de pobres”.
Nas cidades dever-se-ia educar para a convivência pacífica com a pluralidade de identidades sociais e culturais, para a busca de soluções coletivas para o lazer de um grande contingente de pessoas, de acesso fácil e barato. Mas não, o que se faz é segregar espaços de circulação com a contratação de segurança privada ostensiva. Acredita-se que o “mercado” será capaz de fazer a necessária regulação e o que vemos: cada vez a deterioração dos serviços públicos e sua veloz transformação em “negócio” para o enriquecimento dos mesmos poucos donos!
Nossas modernas metrópoles não admitem a circulação das carroças humanas dos descobridores da riqueza do lixo: dos catadores. Eles que descobriram o que há de mais avançado na ciência: a necessidade ecológica de se reutilizar para poupar a natureza! E agora são expulsos porque “atrapalham o trânsito!”, atrasam o progresso!
As eleições municipais possibilitam um debate importante sobre o modelo e a destinação dos espaços públicos dos municípios. Abrem a discussão sobre mecanismos de participação e de construção coletiva de projetos de cidade, onde os(as) cidadãos(ãs) possam definir coletivamente o seu futuro e não serem surpreendidos por grandes empreendimentos imobiliários (que buscando o lucro desenfreadamente, sem preocupação com o meio ambiente, a infra-estrutura necessária para atender com qualidade e dignidade os moradores daquele habitat, terminam por impor uma existência desumana, empurrando os mais pobres para mais longe). Ou, a solução que muitos encontram para se proteger: a construção de condomínios alguns luxuosos, outros verdadeiros fortes urbanos de auto-proteção, onde o acesso é restrito a “convidados”.
O desemprego estrutural desafia a criatividade do povo trabalhador que inventa e descobre novas formas de sobrevivência, que não encontram amparo no modelo de seguridade social existente. O povo quer sobreviver e para isso ocupa os lugares de circulação para vender algo que possa garantir o seu sustento e a possibilidade de algum futuro para sua família. Com o que se deparam muitas vezes: com a repressão policial. Que lógica é essa que atrai as populações rurais ou semi-urbanas para as cidades com a ilusão de uma vida melhor e depois reprime violentamente os que atenderam o apelo do consumismo urbano?
A multiplicidade de demandas populares e sociais nas cidades fragmenta a ação dos movimentos sociais. A maioria deles busca sua reivindicação específica, numa quase permanente luta pela sobrevivência, faltando articulação coletiva para se pensar o “todo”, o “conjunto” da cidade. Este desafio, as organizações que têm identificação com a caminhada proposta pela Assembléia Popular, estão buscando responder com a construção de projetos municipais: fazendo o levantamento das possibilidades econômicas, sociais, políticas, culturais e ecológicas dos municípios, e refletindo como as forças vivas de cada cidade podem construir a gestão do poder local de modo mais participativo, inclusivo e transparente.
Este debate coloca em questão o modelo de desenvolvimento que temos. A matriz energética necessária ao desenvolvimento tem causado danos praticamente irreparáveis à natureza, como tão bem se refletiu durante a Campanha da Fraternidade sobre a Amazônia. E hoje, com a “descoberta” do “ouro verde” do biocombustível, a ameaça à produção dos alimentos fica mais presente e o há o avanço das fronteiras agrícolas. O agronegócio perpetua a concentração de terras nas mãos de alguns grandes grupos econômicos, impedindo a reforma agrária e ameaçando a vida dos povos indígenas, mestres da interação construtiva com o meio ambiente.
Como nossas pastorais e comunidades eclesiais vão influenciar o debate nessas eleições municipais? Que projetos de poder local podem ser construídos para que nossas cidades possam atender às demandas dos mais empobrecidos(as)? Como comprometer os candidatos com a conquista de melhorias nos serviços públicos nos municípios?

IV . Notícias do Congresso Nacional
Qual o futuro do Legislativo?
Levantamento da Secretaria Geral da Mesa da Câmara revelou que os deputados dedicaram os primeiros 120 dias do ano legislativo somente à votação de medidas provisórias (MPs), matérias de iniciativa do Executivo. No período, o plenário analisou 30 MPs. Somente nas últimas semanas de maio, os parlamentares conseguiram destravar a pauta e apreciar projetos de lei (PLs) em plenário. Dos 14 PLs analisados pelo pleno até o dia 15 de maio, metade foi de iniciativa também do governo federal, reduzindo a sete o número de matérias de autoria do próprio Legislativo.
O Congresso Nacional foi também subjugado nas suas funções quando o STF restringe o uso de medidas provisórias para atender a despesas realmente imprevisíveis e urgentes. A Suprema Corte nada mais fez do que aplicar os termos do artigo 62 combinado com o artigo 167 da Constituição Federal, que trata da edição de MPs e da utilização de créditos extraordinários.
E por que assistimos a ingerência tanto do Executivo como Judiciário em assuntos legislativos? A resposta está, sem dúvida, na inércia do Parlamento. O Parlamento está numa encruzilhada: ou resgata seu papel de representante da sociedade frente ao Estado ou sucumbe ao esvaziamento de suas funções específicas. Há uma discussão em curso para repensar o rito das Medidas Provisórias.

Regulamentação da Emenda 29
A Emenda 29 define como serão feitos os investimentos na área da saúde e amplia os recursos para o setor. De acordo com o projeto, a área receberá um investimento extra de R$ 23 bilhões até 2011. O Executivo deixou ao Congresso a responsabilidade de apontar uma nova forma de receita, uma vez que a área econômica do governo diz não ter como financiar a Emenda 29 com o atual orçamento. Então, o líder do governo na Câmara anunciou a intenção de criar um novo imposto para financiar a Emenda 29. A criação do novo tributo, semelhante à CPMF, objetiva criar uma contribuição para “intervir no domínio econômico” de 0,1% na movimentação financeira das contas correntes. A tensão entre os dois blocos de parlamentares tem proporcionado debates infindáveis numa guerra de números.
Divulgação de candidatos-réus em eleições
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto de lei que torna obrigatória, durante as campanhas eleitorais, a divulgação dos nomes dos candidatos que sejam réus em processos criminais ou que respondam a representações por quebra de decoro parlamentar. O autor do projeto é o senador Pedro Simon. A divulgação será feita pela Justiça Eleitoral durante a propaganda eleitoral em rádio e TV. Embora a aprovação traga aos eleitores melhores condições para escolher os candidatos a cargos eletivos, o MCCE defende outras ferramentas para votar em candidatos éticos por meio de um projeto de iniciativa popular.
Projeto de Iniciativa Popular
A exemplo da lei 9840, o novo projeto de iniciativa popular está ganhando força com a coleta de assinaturas de eleitores e eleitoras de todo o País.
No entanto, representantes do Conselho Federal da OAB e outros Juristas de peso alertaram para o risco de uma rejeição do PL por parte significativa de parceiros e da própria mídia. Na letra “e”, se falava inelegibilidade dos “que forem condenados ou estiverem respondendo a processo judicial pela prática de crime...”. Bastaria uma denúncia recebida por um juiz, para que o candidato fosse declarado inelegível. Diante disso, foi feita uma alteração no texto; a letra “e”, recebeu a seguinte redação: “os que forem condenados em primeira ou única instância ou tiverem contra si denúncia recebida por órgão judicial colegiado pela prática de crime...”.Quem são esses cuja denúncia foi acolhida por órgão colegiado? Os que têm foro especial, e que precisam ser denunciados, por exemplo, no STF. Não foram ainda julgados, mas o fato de terem sido denunciados pelo Ministério Público a um órgão colegiado, já deveria inviabilizar sua candidatura.

Aumento do número de vereadores
A Câmara dos Deputados aprovou, por 359 votos a 10, o segundo turno da emenda à Constituição que aumenta em 14,6% o número de vereadores do País, o que significa 7.554 cadeiras a mais. A proposta, que segue para votação em dois turnos no Senado, é fruto da pressão de vereadores, que sofreram um corte de 8.481 vagas em 2004 através da resolução do Tribunal Superior Eleitoral que redefiniu o tamanho das Câmaras em relação aos habitantes. O contraponto da proposta é que ela reduz os repasses financeiros das prefeituras para os legislativos municipais em R$ 1 bilhão. O aumento no número de vereadores se dará de forma escalonada em relação ao número de habitantes por município. São 24 divisões na escala habitantes/número de vereadores.


Câmara aprova alteração no Tribunal do Júri
A Câmara aprovou o projeto de Lei 4203/2001, que altera o funcionamento do Tribunal do Júri. Esse é responsável pelos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida. A principal mudança é a extinção do recurso “protesto por novo júri”, que permite um segundo julgamento em condenações superiores a 20 anos de prisão.Graças a essa artimanha, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, conseguiu ser absolvido da acusação de ser o mandante do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang. No primeiro julgamento, Bida havia sido condenado a 30 anos de reclusão em regime fechado, por homicídio duplamente qualificado, com agravante de a vítima ser idosa.
A nova estratégia dos ruralistas
A bancada ruralista tem ganhado força no Congresso Nacional e ampliado sua área de influência. Um levantamento do site Congresso em foco revela que um em cada três parlamentares que defendem os interesses de grandes proprietários rurais faz parte das comissões ambientais em funcionamento na Câmara e no Senado. Das 261 cadeiras dos 14 colegiados que tratam de questões relacionadas à questão ambiental, 92 estão ocupadas por deputados e senadores ligados ao agronegócio. A estratégia é povoar as comissões de meio ambiente para fragilizar a legislação ambiental. Os ruralistas estão mais fortes do que nunca. As posturas têm sido bem agressivas, propondo inclusive alterar o código da Floresta para atender à produção de biocombustíveis.
Trabalho escravo
Um dos alvos da bancada ruralista é a chamada PEC do Trabalho Escravo (438/2001), que prevê a perda da propriedade onde for constatado esse tipo de crime. A proposta, aprovada em primeiro turno na Câmara em 2004, está parada desde então. No dia 04 de junho corrente foi criada a Frente Nacional contra o Trabalho escravo, composta por parlamentares e entidades da sociedade civil: centrais sindicais, associações de juizes e magistrados da Justiça do Trabalho, Igrejas... (A CNBB emitiu uma Nota que foi lida no ato da criação da Frente). Também foi distribuída à imprensa e às autoridades do Legislativo um Manifesto pela aprovação da PEC do Trabalho escravo, que termina dizendo: “É hora de abolir essa vergonha. Neste ano em que a Lei Áurea faz 120 anos, os senhores congressistas tornar-se-ão parte da história, garantindo dignidade ao trabalhador brasileiro”.
Governo assina MP que reestrutura dívida rural
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assinou a MP 432/2008 que reestrutura a dívida rural, acumulada desde a década de 80. A proposição tem o potencial de atender 2,8 milhões de contratos. A dívida do setor está calculada em R$ 87,5 bilhões e a meta é garantir a recuperação da renda agrícola nacional e o retorno de recursos públicos que estavam comprometidos pelas dívidas dos produtores. Anunciada como a maior renegociação de débitos agrários da história do país, assim mesmo a MP ainda não agradou aos ruralistas. Queixosos da renegociação, estimada em R$ 75 bilhões, os parlamentares da bancada ruralista já se articulam para alterar o texto da MP da Dívida Rural no Congresso e ampliar o valor dos débitos passíveis de revisão.
Câmara deve votar "MP da Grilagem"
Governo e oposição tentam um acordo para votar a medida provisória 422/08 que aumenta o limite da área que pode ser concedida pela União para uso rural, sem processo de licitação, na Amazônia Legal. Ela triplica as áreas públicas nas mãos de posseiros na Amazônia que podem ser legalizadas de imediato. Com ela, as terras serão vendidas sem licitação. Antes da MP, o limite dessa operação era de 500 hectares. Desde a edição da medida, na semana passada, o teto passa a ser de 1.500 hectares. Só poderá se beneficiar da lei quem estiver na terra desde dezembro de 2004. Ambientalistas temem que o desmatamento cresça na mesma proporção. Eles batizaram a medida provisória de Programa de Aceleração da Grilagem (PAG). Já votado na Câmara e enviado ao Senado.

Nossa Senhora Aparecida 'Padroeira' do Brasil
Tramita na comissão de Educação e Cultura o Projeto de Lei 2623/07, de autoria do Deputado Victorio Galli, do Mato Grosso; ele propõe retirar de Nossa Senhora Aparecida o título de 'Padroeira' do Brasil, sob a alegação de que sendo o país um Estado laico, não deve ter este ou aquele padroeiro. Substitui a expressão 'Padroeira do Brasil' por 'Padroeira dos brasileiros católicos apostólicos romanos' e a expressão 'culto público e oficial' por 'homenagem oficial'. O deputado ressalta que o Estado está impedido de instituir qualquer tipo de culto, conforme o artigo 19 da Constituição. Por interferência de alguns deputados, o relator se comprometeu em pedir arquivamento do projeto.Regulamentação da prática da ortotanásiaO autor do Projeto de lei justifica o tema: o problema da terminalidade da vida angustia os profissionais de saúde, especialmente os médicos. O avanço científico e tecnológico no campo da assistência à saúde, possibilitando a manutenção artificial da vida por meio de equipamentos ou tratamentos extremos, gera situações éticas e filosóficas novas, que demandam regulamentação própria e específica. Por esse motivo, o deputado Hugo Leal propõe o presente projeto de lei – 3002/08. Define a ortotanásia como suspensão de procedimentos ou tratamentos extraordinários que objetivam unicamente a manutenção artificial da vida de paciente terminal, com enfermidade grave e incurável.

Comissão adia votação de Lei da Homofobia
A Comissão de Assuntos Sociais do Senado adiou a votação, prevista para o dia 15/05, do substitutivo ao projeto de lei sobre a discriminação sexual. A proposta polêmica rende acaloradas discussões desde o ano passado. O projeto amplia a lei que trata da discriminação por raça, cor, etnia e religião (Lei 7.716 de 5/01/1989), acrescentando também gênero, sexo, orientação sexual... Os senadores Marcelo Crivella e Magno Malta apresentaram voto em separado para tentar amenizar as punições estabelecidas pelo projeto. Durante o debate, a comissão estava lotada, principalmente com representantes das igrejas católica e evangélica. A relatora da proposta, senadora Fátima Cleide, pediu mais tempo para poder analisar as dez emendas apresentadas ao texto, mas avisou que não irá protelar a votação do seu parecer. A matéria segue depois para a comissão de Constituição e Justiça.

Audiência pública sobre a Reforma Tributária
Foi marcada para o próximo dia 17, na Câmara dos Deputados, a audiência solicitada por movimentos sociais e entidades da sociedade civil (INESC, Fórum Brasil de Orçamento, Campanha Nacional pelo Direito a Educação, DIEESE e Pastoral da Criança – CNBB). Os deputados Antonio Palocci e Sandro Mabel (respectivamente presidente e relator da comissão) receberão as emendas e as sugestões preparadas por aquelas entidades em sintonia com muitos movimentos sociais. A audiência é aberta a todas as pessoas interessadas em trazer luzes para uma verdadeira Reforma Tributária.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira
PUC-Minas e ISER-Assessoria

Contribuíram para esta análisePe. Bernard Lestienne SJ e Pe. Thierry Linard SJ (IBRADES), Daniel Seidel (NEMS),Ir.Delci Franzen, Guilherme C. Delgado e Pe. Ernanne Pinheiro

Anexo

Reforma Tributária e suas Implicações para os Direitos Sociais (Seguridade Social).
Guilherme C Delgado

1. Introdução
Recente iniciativa do Poder Executivo junto ao Congresso Nacional dá ensejo a um Projeto da Emenda Constitucional extenso (PEC 233/2008), com profundas alterações no Sistema Tributário Nacional, a ponto de ser definido pelos autores como uma reforma tributária ampla, a ser iniciada por esta PEC e sucedida por detalhada legislação infraconstitucional até 2015.
Esta Nota tem o propósito explícito de averiguar as implicações da reforma tributária ora em discussão sobre o sistema da seguridade social, que diga-se de passagem não é objeto explícito da Reforma. A conseqüência desta, tem implicações de tal gravidade sobre a seguridade, que nos obriga a fazer uma espécie de giro nos objetivos estratégicos declarados da Reforma; para falar sobre suas implicações naquilo que se nos afigura essencial – a segurança jurídica dos direitos sociais básicos.
Advirta-se desde logo que a Reforma declara-se neutra em relação à seguridade social, e em nenhuma justificativa oficial (Exposição de Motivos do Ministério da Fazenda) ou oficiosa (Posicionamento do Relator e Presidente da Comissão de Reforma na Câmara Federal) – declaram-se objetivos de justiça tributária ou equidade distributiva a esse Projeto.
Ao contrário, os objetivos explícitos e declarados do PEC 233/2008 são de:
1. simplificação e desburocratização do sistema tributário mediante uniformização de regras tributárias (ICMS), e redução dos tributos federais- eliminam-se várias Contribuições Sociais, substituídas por um novo tributo – Imposto sobre Valor Adicionado.
2. eliminação da guerra fiscal entre os entes federados;
3. desoneração tributária (parcialmente sobre folha de salário);
4. eliminação de distorções da estrutura tributária, principalmente o viés da cumulatividade da taxação em diversas fases da produção e circulação de bens e serviços;
5. aumento da eficiência e competitividade geral da economia, com o que se espera acelerar o crescimento econômico.

2. Os efeitos da Reforma sobre o Orçamento da Seguridade Social
Para melhor entendimento dos efeitos da Reforma Tributária em cogitação, vamos enunciar genericamente como é atualmente a estrutura de fontes e usos do sistema de seguridade (o orçamento da seguridade social), para em seguida verificar a mudança que se opera e principalmente as lacunas que se introduzem no atual ordenamento jurídico desse sistema.
Receitas da Seguridade Social
Fontes
Como Proporção do PIB (2005)
1. Contribuição de Empregadores e Trabalhadores - 42,52 %
2. COFINS - 69,29
3. Contribuição sobre Lucro Líquido - 76,38
4. PIS-PASEP – parcela vinculada ao Seguro Desemprego - 79,53
5. CPMF - 83,46
6. Contribuição a Seguridade do Servidor Público - 90,55
7. Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza - 92,12
8.Recursos Ordinários do Tesouro - 97,63
Fonte: “Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise nº 13” – Brasília – IPEA – agosto de 2006 – p-37
Estas fontes de recursos à Seguridade Social, que à exceção da CPMF, estão integralmente em vigor, são a base financeira sobre a qual repousam os quatro subsistemas de direitos sociais erigidos pela Constituição de 1988: o Sistema Único de Saúde, os dois Sistemas de Previdência Social (Regime Geral de Previdência Social e Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos da União), o Sistema Único de Assistência Social e o Seguro Desemprego.

O Fundo da Pobreza (fonte da Bolsa Família) também faz parte desse conjunto de fontes, mas pelo fato de não se configurar como direito social constitucionalizado, pode a qualquer momento ter destinação diversa daquele que ora apresenta, sem que isto afete a política social de estado, o que não ocorre com a maior parte dos recursos destinados aos cinco sistemas citados anteriormente.
Observe-se uma cláusula fundamental que está implícita nessa estrutura de fontes, oriunda dos princípios da Seguridade Social (Art.194) e da sua regra de financiamento (Art.195) – é que haverá sempre obrigação do estado por meio de “outras fontes” de complementar o total dos recursos se àquelas (fontes) vinculadas não forem suficientes para suportar financeiramente os direitos sociais líquidos e certos requeridos e deferidos no ano fiscal. Essa regra veio a ser positivada em 1999 com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar a C.F.) que estabeleceu em seu artigo 18 a insusceptibilidade a cortes das despesas vinculadas aos direitos da seguridade social. Essa combinação de regras pressupõe o primado da precedência e prioridade do direito social no orçamento, ainda que algum teto orçamentário viesse a ser atingido no ano fiscal.

3. O que muda na Seguridade com a Reforma.
A reforma ora em discussão afeta o sistema de Seguridade Social nos seguintes aspectos:
1. Desonera-se a contribuição patronal à Previdência Social (RGPS) em 6 pontos percentuais, ao ritmo de hum ponto percentual ao ano, a partir do segurado ano após aprovada a Reforma, ficando a compensação dos recursos desonerados do RGPS para providência posterior.
2. Ficam extintas várias das “Contribuições Sociais” vinculados à Seguridade Social mencionados (COFINS, Contribuição sobre o Lucro Líquido e do PIS-PASEP, enquanto a CPMF não é objeto desta Reforma, o que equivale a excluí-la formalmente da base financiadora do Sistema.
3. Para compensar a perda das “Contribuições”, a Reforma cria um novo conceito de vinculação tributária à seguridade social – que é explicitamente admitida como sendo igual à soma da COFINS, da Contribuição Sobre o Lucro Líquido, agregado à parcela do PIS que financia o seguro desemprego, segundo seus valores apurados em um dado ano (2006).Essa massa de recursos seria a nova destinação explicitamente atribuída à Seguridade Social no novo texto constitucional. Essa nova vinculação correspondeu em 2005 a 37% do total das fontes federais financiadoras da despesa da seguridade social.

Isto vira um limite quantitativo explícito no texto constitucional – explicitamente para a seguridade social e o seguro desemprego, completamente estranho ao tamanho atual do Orçamento da Seguridade Social.
4. O novo texto da reforma mantém os recursos da folha de salários, vinculados à Previdência Social e anuncia que serão realizados no futuro novas vinculações de recursos para Previdência Social, com incidência na nova base fiscal criada (IVA + IPI + Imposto de Renda). Isto pelo que se deduz, viria com legislação infraconstitucional, já que não se estabelece aqui o critério quantitativo explícito e suficiente pra compensar o déficit de caixa de Previdência Social, da desoneração criada pela Reforma e ainda o déficit da caixa do Regime Próprio dos Servidores Públicos.
5. O texto da reforma é omisso com relação às demais fontes que complementariam nos níveis atuais o Orçamento da Seguridade Social. Além daquelas a que são explicitamente mencionados para serem intercambiados -COFINS, CSLL e PIS; a Folha de Salário do Regime Geral de Previdência é sabidamente credora de compensações, que estariam em “estudo” para posterior legislação.

Isto posto, o texto reformado estaria na melhor das hipóteses, para usar o exemplo do ano fiscal de 2005, recorrendo à fontes que supriram, no primeiro ano do período pós-reforma, cerca de 83,5% da despesa do sistema, nos níveis em que esta se deu em 2005 (sempre associada a proporções do PIB).
Isto significa no exemplo da Tabela 1, agregar todas as fontes (COFINS, CLSS, PIS, e Contribuição Previdenciária). Mas como nos anos subseqüentes haverá a desoneração parcial da Folha, haveria também a diminuição provável dessa proporção.
Os recursos que faltam – onde se destacam a CPMF, os Recursos Ordinários e Outras Fontes põem em sério risco a garantia jurídica de atendimento aos direitos sociais contemplados no Orçamento da Seguridade.
Observe-se ainda que ao instituir no texto Constitucional limites quantitativos explícitos daquilo que a reforma estabelece como teto de recursos para a Seguridade Social, muito aquém da base atual, sinaliza-se para a legislação infraconstitucional subseqüente um desconforto marcante para o financiamento dos direitos, segundo o estatuto jurídico atual. Provavelmente a falta de recursos seria resolvida casuisticamente no tratamento anual do Orçamento, ou ainda suscitaria uma garantia seletiva àqueles setores que conseguirem manter-se incólume aos cortes.
Finalmente deve-se observar que a Reforma Tributária ignora completamente o conceito constitucional do Orçamento da Seguridade Social, tratando-o de forma parcial e fragmentária e ainda subestimado ou omitindo as necessidades de financiamento dos vários sistemas e programas que integram o sistema.
A conseqüência provável das novas regras é de forte insegurança jurídica para os titulares de direitos nesse sistema, ou ainda uma apropriação dos grupos com maior capacidade de fazer prevalecer suas demandas.
Por tudo isso, parece-nos de maior temeridade votar até o dia 20 de julho o texto da atual reforma, como apressadamente programam os dirigentes do Congresso, sob pressão do Executivo, sem um debate mais transparente e aprofundado a respeito das conseqüências desse novo arranjo tributário para a garantia dos direitos sociais instituídos na Seguridade Social pela Constituição de 1988.

4. Síntese e Conclusões
O texto da proposta de reforma tributária ora em tramitação no Congresso Nacional, de autoria do Poder Executivo (PEC 233/2008),declara objetivos explícitos de simplificação, eficiência e desoneração tributária e assume forte poder de controle sobre o poder de tributar dos Estados em nome da eliminação da chamada “guerra fiscal”. Tais objetivos e os meios perseguidos para atingi-los mereceriam uma avaliação específica, que contudo não é objeto deste texto. A ausência de objetivos de justiça tributária ou equidade distributiva na Reforma, ou sua pretensa neutralidade neste campo, são desde logo motivos de preocupação, face a reconhecida herança de desigualdade na captura das fontes e posterior utilização dos recursos tributários na economia e sociedade..
Por outro lado, de maneira subreptícia o texto do Projeto de Reforma desestrutura completamente o perfil das finanças sociais construído desde a Constituição de 1988 no tocante ao Orçamento da Seguridade Social(Saúde, Previdência, Assistência Social e Seguro Desemprego).Em contrapartida criam-se novos limites e regras constitucionais claramente insuficientes e estranhos à proteção dos direitos sociais básicos nesse sistema, susceptíveis de constranger, abafar ou negar a segurança jurídica dos titulares desses direitos.
As mudanças propostas, se consagradas em texto constitucional, comandariam uma legislação infra-constitucional fortemente restritiva ao chamado gasto social federal. Deixariam ainda os direitos sociais ao abrigo do sistema – atualmente garantidos pelo ordenamento jurídico, a mercê de ajustes casuísticos na conjuntura dos orçamentos anuais,sob forte disputa de interesses econômicos muito poderosos.
É sábia a regra constitucional original (arts. 194 e 195 da CF), que cuidou de conceder prioridade objetiva, vinculando alguns recursos “ex-ante” para garantir direitos sociais em determinadas situações de risco ou atendimento de serviços básicos relacionados a direitos e explicitamente assumidos no sistema de seguridade social , tais como - idade avançada, invalidez, viuvez, reclusão, doença, proteção ao menor, desemprego involuntário, atendimento dos serviços de saúde etc. Os frutos dessas regras são o principal legado distributivo da Constituição de 1988, contribuindo decisivamente para melhoria do bem estar social dos grupo vulneráveis da sociedade, sendo provavelmente o seu lado crítico a amplitude da cobertura atingida, que longe está ainda de ser universal.
Não é ocioso destacar que esse sistema de garantia de direito básicos, cujo estatuto ético normativo é o da proteção social pública, é necessariamente exigente em recursos econômicos, parte dos quais é cobrada dos beneficiários diretos, sob o formato de contribuições securitárias; enquanto outra parte importante o é sob a forma de tributos do conjunto da sociedade. Estes últimos devem cumprir uma função tipicamente re-distributiva- destinados prioritariamente àqueles sem capacidade contributiva no seguro social ou a toda a sociedade, no caso dos serviços universais de saúde.
Quando o sistema tributário é reformulado e afeta de maneira radical o sistema de proteção social, seria de se esperar numa sociedade democrática um amplo debate sobre suas conseqüências sobre direitos sociais. Infelizmente o debate público tem se cingido aos aspectos de interesse do mundo empresarial. Os setores sociais afetados pelas potenciais mudanças estão de certa forma marginalizados do debate político, cooptados pelas pressões oficiais ou simplesmente distanciados da esfera pública pela enorme cortina de silêncio que ao tema destina a cobertura midiática. Mas os riscos de retrocesso institucional são fortes, que contudo podem ser revertidos se o argumento da legitimidade da reforma for levantado de forma significativa e oportuna.
Em razão dos fatos e argumentos aqui levantados, entendemos que uma palavra de esclarecimento, cobrança de rumos e advertência ética do episcopado sobre o sentido atual da Reforma,contêm poder performativo importante, para pelo menos colocar o tema da segurança jurídica dos direitos sociais no centro do debate congressual.

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