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sábado, 19 de julho de 2008

Paulo, o apóstolo dos povos - Bento XVI

Na quarta-feira, 2 de julho de 2008, Bento XVI falou da figura, do pensamento do apóstolo dos povos e do seu ambiente religioso-cultural.

Queridos irmãos e irmãs:

Hoje quero começar um novo ciclo de catequeses dedicado ao grande apóstolo São Paulo. A ele, como sabeis, está consagrado este ano que vai da festa litúrgica dos santos Pedro e Paulo, de 29 de junho de 2008, até a mesma data em 2009. O apóstolo Paulo, figura excelsa, quase inimitável, mas sempre estimulante, é-nos apresentado como um exemplo de total entrega ao Senhor e à sua Igreja, assim como de grande abertura à humanidade e às suas culturas. Vale a pena, portanto, que lhe dediquemos um lugar particular, não só em nossa veneração, mas também que nos esforcemos por compreender o que ele pode dizer também a nós, cristãos de hoje.
Ambiente em que viveu e atuou Paulo
Em nosso primeiro encontro, consideraremos o ambiente no qual ele viveu e atuou. Um tema assim pareceria que nos remonta muito atrás, dado que temos de introduzir-nos no mundo de dois mil anos atrás. E, contudo, isso é verdade só em aparência e parcialmente, pois poderemos constatar que, desde diferentes aspectos, o contexto sócio-cultural de hoje não é muito diferente ao de então.
Um fator primário e fundamental que se deve ter presente está constituído pela relação entre o ambiente no qual nasce e se desenvolve Paulo e o contexto global no qual sucessivamente se integra. Ele procede de uma cultura sumamente precisa e circunscrita, certamente minoritária, a do povo de Israel e de sua tradição. No mundo antigo, e particularmente dentro do império romano, como nos ensinam os especialistas, os judeus deviam ser cerca de 10% da população total. Aqui, em Roma, sua porcentagem em meados do século I era ainda menor, alcançando um máximo de 3% dos habitantes da cidade. Suas crenças e seu estilo de vida, como acontece ainda hoje, diferenciavam-nos claramente do ambiente circunstante. Isso podia ter dois resultados: ou a ridicularização, que poderia levar à intolerância, ou a admiração, que se expressava em formas de simpatia, como no caso dos «temerosos de Deus» o dos «prosélitos», pagãos que se associavam à sinagoga e compartilhavam a fé no Deus de Israel. Como exemplos concretos dessa dupla atitude podemos citar, por um lado, o duro juízo de um orador, como Cícero, que desprezava sua religião e inclusive a cidade de Jerusalém (cf. Pro Flacco, 66-60), e, por outra, a atitude da mulher de Nero, Popéia, recordada por Flávio Josefo como «simpatizante» dos judeus (cf. Antiguidades judaicas 20, 195. 252; Vida 16), sem esquecer que Julio César lhes havia reconhecido oficialmente direitos particulares, que são referidos pelo mencionado historiador judeu Flávio Josefo (cf. ibidem, 14, 200-216). O que é seguro é que o número dos judeus, tal como continua acontecendo hoje, era muito superior fora da terra de Israel, ou seja, na diáspora, no território que os demais chamavam de Palestina.
Não surpreende, portanto, que o próprio Paulo seja objeto deste duplo e contrastante juízo do qual falei. Há algo certo: o caráter particular da cultura e da religião judaica encontrava tranquilamente seu lugar dentro de uma instituição que tudo penetrava, como o Império Romano. Mais difícil e sofrida será a posição do grupo daqueles, judeus ou gentios, que aderirão com fé à pessoa de Jesus de Nazaré, na medida em que se diferenciarão tanto do judaísmo como do paganismo imperantes. Em todo caso, dois fatores favoreceram o compromisso de Paulo.
O primeiro foi a cultura grega, ou melhor, helenista, que depois de Alexandre Magno havia se convertido em patrimônio comum ao menos no Mediterrâneo oriental e no Oriente Médio, ainda que integrando em si muitos elementos das culturas de povos tradicionalmente considerados como bárbaros. Um escritor da época afirma que Alexandre «ordenou que todos considerassem como pátria todo o ecúmeno... e que o grego e o bárbaro deixassem de matar-se» (Plutarco, De Alexandri Magni fortuna aut virtute, §§ 6.8).
O segundo fator foi a estrutura político-administrativa do império romano, que garantia paz e estabilidade, desde Bretanha ate o sul do Egito, unificando um território de dimensões como nunca antes se havia visto. Neste espaço era possível mover-se com suficiente liberdade e segurança, desfrutando, entre outras coisas, de um sistema extraordinário de estradas, e encontrando em cada ponto de chegada características culturais básicas que, sem estar em detrimento dos valores locais, representavam um tecido comum de unificação super partes, até o ponto de que o filósofo judeu Fílon de Alexandria, contemporâneo do próprio Paulo, elogiava o imperador Augusto porque «uniu em harmonia todos os povos selvagens ... convertendo-se em guardião da paz» (Legatio ad Caium, §§ 146-147).
Visão universal
A visão universalista típica da personalidade de São Paulo, ao menos do Paulo cristão que surgiu após a queda no caminho de Damasco, deve certamente seu impulso básico à fé em Jesus Cristo, enquanto a figura do Ressuscitado supera todo particularismo. De fato, para o apóstolo, «já não há judeu nem grego; nem escravo nem livre; nem homem nem mulher, já que todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 28).
Situação histórico-cultural - Paulo "homem de três culturas"
No entanto, a situação histórico-cultural de seu tempo e ambiente também influíram em suas opções e compromisso. Alguém definiu Paulo como «homem de três culturas», levando em conta sua origem judaica, seu idioma grego e sua prerrogativa de «civis romanus», como testemunha também o nome de origem latina.
Deve-se recordar em particular a filosofia estóica, que era dominante no tempo de Paulo e que influenciou, ainda que de maneira marginal, inclusive o cristianismo. Neste sentido, não podemos deixar de mencionar alguns nomes de filósofos estóicos como os iniciadores Zenão e Cleantes, e depois os dos mais próximos cronologicamente de Paulo, como Sêneca, Musônio e Epicteto: neles se encontram valores elevadíssimos de humanidade e de sabedoria, que serão acolhidos naturalmente pelo cristianismo. Como escreve acertadamente um especialista na matéria, «a Stoa... anunciou um novo ideal, que certamente impunha deveres ao homem para com seus semelhantes, mas ao mesmo tempo o libertava de todos os laços físicos e nacionais e fazia dele um ser puramente espiritual» (M. Pohlenz, La Stoa, I, Firenze 1978, pág. 565). Basta pensar, por exemplo, na doutrina do universo, entendido como um grande corpo harmonioso e, portanto, na doutrina da igualdade entre todos os homens sem distinções sociais, na igualdade, ao menos em teoria, entre o homem e a mulher, e no ideal da sobriedade, da justa medida, e desse domínio de si mesmo para evitar todo excesso. Quando Paulo escreve aos Filipenses «tudo o que há de verdadeiro, de nobre, de justo, de puro, de amável, de honrável, tudo o que for virtude e coisa digna de elogio, tudo isso levai-o em conta» (Filipenses 4, 8), não faz mais que retomar uma concepção estritamente humanista, própria da sabedoria filosófica.
Crise da religião tradicional
Na época de São Paulo, acontecia também uma crise da religião tradicional, ao menos em seus aspectos mitológicos e inclusive cívicos. Depois de que Lucrécio, já um século antes, sentenciara polemicamente que «a religião provocou tantas más ações» (De rerum natura, 1, 101), um filósofo como Sêneca, superando todo ritualismo exterior, ensinava que «Deus está perto de ti, está contigo, está dentro de ti» (Cartas a Lucílio, 41,1).
Do mesmo modo, quando Paulo se dirige a um auditório de filósofos epicuristas e estóicos no Areópago de Atenas, diz textualmente que «Deus... não habita em santuários fabricados por mãos humanas..., pois nele vivemos, nos movemos e existimos» (Atos dos Apóstolos 17, 24.28). Deste modo, ele se faz certamente eco da fé judaica em um Deus que não pode ser representado em termos antropomórficos, mas se põe também em uma longitude de onda religiosa que seus ouvintes conheciam bem. Também temos de levar em consideração o fato de que muitos dos cultos pagãos prescindiam dos templos oficiais da cidade e se desenvolviam em lugares privados que favoreciam a iniciativa dos adeptos. Portanto, não surpreendia que também as reuniões cristãs (as ekklesiai), como testemunham sobretudo as cartas de São Paulo, acontecessem em casas privadas. Naquela época, por outro lado, não existia ainda nenhum edifício público. Portanto, as reuniões dos cristãos deviam ser vistas pelos contemporâneos como uma simples variação dessa prática religiosa mais íntima. De qualquer forma, as diferenças entre os cultos pagãos e o culto cristão não são de pouca importância e afetam tanto a consciência da identidade dos participantes como a participação em comum de homens e mulheres, a celebração da «ceia do Senhor» e a leitura das Escrituras.
Em resumo: ao relembrar o ambiente cultural do século I da era cristã, fica claro que não é possível compreender adequadamente São Paulo sem situá-lo no contexto tanto judeu como pagão de seu tempo. Deste modo, sua figura adquire uma profundidade histórica e ideal, demonstrando elementos compartilhados e originais com relação ao ambiente. Mas tudo isso é igualmente válido para o cristianismo em geral, do qual o apóstolo Paulo é um paradigma de primeiro plano, de quem todos temos ainda tanto que aprender e este é o objetivo do Ano Paulino: aprender de São Paulo a fé, aprender dele quem é Cristo, aprender, em definitivo, o caminho para uma vida reta.

[Fonte: http://www.vatican.va/]

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